Fumo de terceira mão: como substâncias do cigarro ‘se agarram’ a objetos e fazem mal à saúde
Pouco conhecida, essa forma de contato com compostos químicos que impregnam tecidos, móveis e paredes vem preocupando os especialistas. No Dia Nacional de Combate ao Fumo, comemorado em 29 de agosto, saiba mais sobre esse problema.
Malefícios do fumo de terceira mão ainda não são completamente conhecidos — Foto: GETTY IMAGES/BBC
Você já ouviu falar de fumo de terceira mão? O conceito é direto e simples: as substâncias liberadas durante a queima do cigarro impregnam móveis, tecidos ou paredes.
“E elas podem permanecer nesses objetos e superfícies por dias, semanas, meses ou até anos e representam riscos à saúde”, completa o oncologista clínico Marcelo Cruz, do Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo.
Embora esse problema seja descrito em trabalhos científicos desde a década de 1950, ele é pouco conhecido em comparação com o fumo passivo — quando um indivíduo que não é usuário do tabaco inala diretamente a fumaça baforada por alguém que esteja próximo.
Um levantamento feito em 2009 nos Estados Unidos calculou que apenas 43% dos tabagistas acreditam que o fumo de terceira mão seria danoso às crianças, enquanto que 84% deles dizem conhecer bem os perigos do fumo passivo.
Os especialistas alertam que o contato com esses compostos químicos pode fazer mal à saúde — e já existem alguns trabalhos preliminares, feitos em roedores, que apontam o risco de problemas comportamentais, como a hiperatividade, e até de lesões em órgãos como os pulmões e o fígado.
Entenda a seguir o que já se sabe sobre esse fenômeno e o que pode ser feito para evitá-lo.
Moléculas impregnadas
Segundo o De acordo com o Ministério da Saúde, o cigarro carrega mais de 4,7 mil substâncias tóxicas.
Algumas delas, como a nicotina, a naftalina e os formaldeídos, são liberadas durante o processo de queima e ficam vagando pelo ambiente misturadas à fumaça.
Aos poucos, elas “grudam” nas superfícies e nos objetos, principalmente naqueles que são revestidos por tecidos, como tapetes, carpetes, toalhas, cortinas e na própria roupa.
Muitos desses compostos também já foram detectados “agarrados” aos móveis e à tinta das paredes.
O primeiro trabalho sobre o tema foi publicado em 1953 por médicos americanos. Eles demonstraram que a nicotina se condensa (passa do estado gasoso para o líquido) e, quando aplicada nas costas de ratos, causaria tumores de pele.
Em 1991, uma investigação feita na Dinamarca encontrou partículas dessa mesma substância (que causa uma dependência química muito forte) na poeira de casas onde moravam fumantes.
Já em 2008, um grupo da Universidade Estadual de San Diego, nos EUA, avaliou substâncias encontradas nos carros de tabagistas e descobriu que até o painel do veículo carrega poluentes encontrados nesse produto, mesmo que a pessoa não tenha o costume de acender o cigarro quando está dirigindo.
Mais recentemente, em março de 2020, uma equipe da Universidade Yale, também nos Estados Unidos, mediu a presença de alguns desses compostos químicos numa sala de cinema.
Os cientistas descobriram que em filmes com uma classificação etária mais restrita (o que indica a presença de um número maior de adultos e possivelmente mais fumantes naquele espaço fechado) há uma concentração considerável de compostos danosos à saúde, mesmo que seja proibido fumar neste local.
Os autores então concluíram que os fumantes carregam consigo esses químicos por meio da pele e das roupas, mesmo que não estejam tragando um cigarro naquele exato momento. Eles estimaram que a quantidade de compostos “agarrados” ao corpo dessas pessoas chega a equivaler ao contato de um a dez cigarros pelo fumo passivo.
Por fim, Cruz cita um trabalho publicado em fevereiro deste ano, em que os cientistas analisaram a presença de nicotina nas mãos de crianças.
De 311 voluntários com menos de 12 anos que não tinham contato direto com algum fumante, 296 (ou 95% do total) apresentavam essa substância na superfície da pele.
Já num grupo de 193 crianças cujos familiares são usuários do tabaco, essa taxa chegou a 97,9%.
Crianças são mais vulneráveis ao fumo de terceira mão — Foto: GETTY IMAGES/BBC
Riscos pouco conhecidos
Embora os especialistas se preocupem com essa exposição a tantos compostos químicos, são poucas as pesquisas que estimam com exatidão os impactos do fumo de terceira mão na saúde.
Um estudo feito na Universidade da Califórnia em Riverside, nos EUA, avaliou em roedores os possíveis estragos do contato de terceira mão com as substâncias do cigarro.
Depois de um tempo, os animais expostos a objetos contaminados por esses compostos químicos foram diagnosticados com alguns problemas físicos e comportamentais.
As cobaias sofreram com danos nos pulmões e tinham mais propensão a condições inflamatórias, como a Doença Pulmonar Obstrutiva Crônica (DPOC) e a asma. Eles também apresentaram alterações no fígado que precedem quadros como cirrose, câncer e doenças cardiovasculares.
Os cientistas também realizaram testes comportamentais e viram que os ratos expostos ao fumo de terceira mão demonstravam com mais frequência sinais de hiperatividade.
Que fique claro: pesquisas desse tipo são consideradas preliminares e não é possível afirmar com toda a certeza que esses mesmos problemas se repetem nas pessoas. Mesmo assim, elas servem de base para que outros estudos, com voluntários humanos, possam acontecer no futuro.
“Infelizmente, ainda são poucos os dados que temos sobre o fumo de terceira mão ou do quanto risco ele representa para o desenvolvimento de um câncer”, admite Cruz.
“Mesmo assim, esse problema deve ser encarado com preocupação, ainda mais quando consideramos as crianças, que têm contato com muitas superfícies contaminadas”, complementa o oncologista.
A própria estatura do público infantil já facilita essa proximidade com tapetes e móveis onde esses compostos do cigarro se depositam.
Além disso, os pequenos correm maior risco por levarem a mão à boca com mais frequência e estarem num estágio de formação dos órgãos vitais e do próprio sistema imunológico.
O que fazer?
Os especialistas apontam que a recomendação mais óbvia para diminuir o risco do fumo direto, passivo ou de terceira mão é simplesmente não fumar.
Existem tratamentos que ajudam a largar o vício — alguns deles estão disponíveis, inclusive, no Sistema Único de Saúde (SUS).
A Organização Mundial da Saúde (OMS) calcula que o cigarro causa mais de 8 milhões de mortes todos os anos.
O contato direto ou indireto com todas as milhares de substâncias contribui para o desenvolvimento de mais de 15 tipos de câncer diferentes, além de estar relacionado com infarto, acidente vascular cerebral (AVC), DPOC, tuberculose, infecções respiratórias, úlceras no estômago e no intestino, impotência sexual, infertilidade e catarata.
O Instituto Nacional de Câncer (Inca) estima que 443 brasileiros morram todos os dias por causa do tabagismo. Por ano, 161 mil mortes relacionadas ao cigarro poderiam ser evitadas no país.
Um total de 443 brasileiros morrem todos os dias por causa do tabagismo — Foto: GETTY IMAGES/BBC
Já para aqueles que não desejam abandonar o cigarro agora, a dica é nunca fumar em ambientes fechados ou próximos demais da casa, do escritório ou de espaços públicos.
A remoção de muitos desses compostos químicos que estão “agarrados” em objetos e superfícies parece algo difícil de fazer. Uma publicação dos Centros de Tratamento do Câncer da América, nos EUA, aponta que “os métodos de limpeza normais não são efetivos contra esses poluentes”.
“Na maioria das vezes, a única opção é trocar carpetes e pintar de novo as paredes da casa”, informa o texto.
Para Cruz, o conceito do fumo de terceira mão “reforça como é importante manter o ambiente limpo e livre do cigarro”.
“Como se sabe, algumas dessas substâncias podem ficar impregnadas por semanas, meses ou até anos e eventualmente prejudicar a saúde de pessoas que nem estavam ali junto com os fumantes.”
“Estamos tão habituados a falar dos riscos do tabagismo ou do fumo passivo que às vezes esquecemos desses efeitos indiretos. Ou seja, não basta apenas fumar num outro cômodo da casa ou abrir uma janela para dissipar a fumaça”, continua o oncologista.
“É preciso pensar nas crianças e em como um hábito pode fazer mal a toda uma população que é mais vulnerável”, conclui.
– Este texto foi publicado originalmente em https://www.bbc.com/portuguese/geral-62717719
Fonte: G1