10 anos da Lei de Cotas: ela está ameaçada? O que pode mudar?
Pela legislação, processo deve ser feito 10 anos após a sanção, que ocorreu em 29 de agosto de 2012. Mas, segundo associação de reitores, nada será alterado se debate não acontecer agora. Política garante metade das vagas a alunos da rede pública, pretos, pardos, indígenas, pessoas com deficiência e população de baixa renda. Veja o que está em discussão.
Lei de Cotas: como funciona e o que pode acontecer no processo de revisão
A Lei de Cotas, de 2012, garante que metade das vagas de institutos e universidades federais seja reservada para ex-alunos da rede pública. O texto prevê também que, até esta segunda-feira (29), exatamente 10 anos depois de ser sancionada, a política de ações afirmativas passe por uma revisão.
Mas o que significa revisar a Lei? Ela corre o risco de deixar de existir? Pretos, pardos, indígenas e pessoas com deficiência, atualmente beneficiados, podem ficar de fora em uma eventual mudança das ações afirmativas?
Segundo especialistas ouvidos pelo g1, o termo “revisão” refere-se à necessidade de analisar como a política pública funcionou para, então, discutir se deve ser ampliada, mantida como está ou “enxugada”. Ou seja, não há um prazo de validade: mesmo sem ter entrado na pauta da Comissão de Educação até o momento, a Lei não caducará. No entanto, estará sempre sujeita a mudanças, caso entre na pauta do Congresso.
Já o presidente da Comissão de Educação da Câmara dos Deputados, Kim Kataguiri (União-SP), avalia que, como o debate não ocorreu ainda em agosto, as universidades federais estarão, sim, livres para abandonar as cotas, se assim desejarem (leia mais abaixo). Algo que, segundo associação de reitores das federais, não deve acontecer:
“Nenhuma universidade deixará de ofertar vagas. E, caso a lei não seja revisada, ela não deixará de existir”, afirma Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), em nota.
Para Anna Venturini, do Núcleo de Pesquisa e Formação em Raça, Gênero e Justiça Racial (Afro) do Cebrap – centro globalizado estuda a realidade brasileira desde 1969 – , há três possibilidades:
- o assunto continuar fora da pauta, e, portanto, a lei permanecer valendo com o texto atual;
- o prazo de revisão ser prorrogado (logo, ficar a cargo do próximo governo e Congresso, a serem eleitos em outubro);
- a discussão acontecer a qualquer momento, mesmo depois de 29 de agosto, e, a partir dela, haver alguma mudança na lei (seja para restringir seu alcance a menos grupos ou para incluir novos mecanismos, como o de controle de fraudes).
Como funciona a Lei de Cotas
A Lei de Cotas foi desenhada com base na experiência de universidades que já tinham algum tipo de ação afirmativa. A Universidade de Brasília (UnB), por exemplo, foi pioneira ao implementar em 2004 a reserva de vagas para estudantes negros.
Até 2012, das 96 universidades estaduais e federais então existentes, 70 tinham algum programa de inclusão no processo seletivo. Coube à lei, além de ampliar o alcance das cotas, criar um padrão de funcionamento para elas.
O texto estabeleceu o seguinte: 50% das vagas dos institutos e universidades federais devem ser reservadas para estudantes que cursaram o ensino médio integralmente em escolas públicas.
Este grupo inclui fatias de determinados perfis:
- metade deve ter renda familiar per capita de até 1,5 salário mínimo;
- pretos, pardos, indígenas e pessoas com deficiência devem ser contemplados com um número de vagas equivalente às parcelas que ocupam na população do Estado.
Um exemplo hipotético: A Universidade Estudos oferta 100 vagas no Sistema de Seleção Unificada (Sisu). No estado em que ela está estabelecida, 5% dos habitantes são pretos, 29% são pardos, e 2%, indígenas. As pessoas com deficiência representam 8% nos moradores. Portanto:
Exemplo de como funciona a Lei de Cotas em uma turma de 100 alunos, em estado com 5% dos habitantes pretos, 29% pardos, 2% indígenas e 8% com deficiência — Foto: Arte/g1
O que é o processo de revisão da Lei de Cotas?
Wallace Corbo, professor da FGV Direito Rio, explica que o processo de revisão previsto na Lei é comum no monitoramento de políticas públicas.
“O prazo de 10 anos [que acaba nesta segunda-feira] não é para que a Lei de Cotas perca os efeitos. Ela não deixará de valer. É só para criar a obrigação de o governo avaliar quais foram as consequências da política nesse período e, se necessário, promover alguma mudança”, afirma.
Especialista em Administração Pública, Carlos Antônio Picarelli reforça a mesma ideia.
“O texto não especifica que o prazo de validade é de 10 anos. Apenas exprime que ela deve ser revisada diante das condições explícitas ali, com o acompanhamento e avaliação por parte do Ministério da Educação. Portanto, na teoria, ela deveria continuar em vigor mesmo após o período.”
Em 2012, quando a Lei de Cotas foi aprovada, havia a menção específica de que caberia ao Poder Executivo promover a revisão. Desde 2016, no entanto, uma mudança na redação deixou de mencionar quem seria o agente do debate.
Corbo ressalta que só o Legislativo – por meio da Câmara dos Deputados e do Senado – poderia limitar a política de cotas a critérios de renda e excluir, por exemplo, pretos, pardos e indígenas das ações afirmativas. “Se algo assim acontecer, pode ser objeto de discussão no Supremo Tribunal Federal”, afirma o professor.
Há outra possibilidade de a questão ir parar no STF: algum parlamentar ou reitor de universidade federal alegar que o termo “revisão” prevê, sim, um prazo de vigência para a lei.
É o posicionamento, por exemplo, do deputado federal Kim Kataguiri (União-SP), presidente da Comissão de Educação.
“Na minha interpretação, se a revisão não acontecer, a Lei perderá a eficácia. Isso não significa que as universidades vão ser proibidas de oferecer cotas, e sim que deixarão de ser obrigadas a fazer isso. Ficarão livres a partir de setembro”, afirma Kataguiri ao g1.
Luiz Augusto Campos, pesquisador do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ), não aposta que este argumento seja usado por reitores.
“Até pode acontecer de alguma universidade defender que não vai mais aplicar as cotas em 2023, mas acho improvável. Caso ocorra, vai ser algo judicializado.”
Quais mudanças podem acontecer na Lei de Cotas?
Segundo levantamento da Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as (ABPN), até janeiro de 2022, havia 67 Projetos de Lei e Projetos de Decreto Legislativo registrados no Congresso.
Eles tanto sugerem mudanças – como a ampliação das cotas para a pós-graduação – quanto pedem o adiamento da revisão.
O principal PL, de autoria original do deputado federal Bira do Pindaré (PSB), por exemplo, empurra o debate das cotas para 2032.
“É que, quando se inicia o trâmite legislativo, não se sabe como ele vai terminar. Corre-se o risco de querer ampliar os benefícios, mas, no Congresso, a discussão mudar e acabar restringindo [as ações afirmativas] para menos grupos”, diz Corbo, da FGV.
“Por isso que, dilatando o prazo, a tendência é haver maior tranquilidade. Para não correr o perigo de ver tudo ser destruído, melhor não mexer em nada agora.”
Mesmo após esta segunda-feira (29), a qualquer momento, o assunto pode ser discutido. Veja quais mudanças podem acontecer, caso o tópico entre na pauta:
- Excluir o critério racial
Um dos principais pontos de discussão é a manutenção ou exclusão dos critérios raciais da Lei de Cotas. Na redação atual, pretos, pardos e indígenas formam uma subcota dentro do grupo de ex-alunos da rede pública.
Há quem defenda, no entanto, que haja apenas uma classificação por renda.
“A questão socioeconômica é praticamente um ponto pacífico entre grupos de direita e de esquerda. Mas existem correntes que defendem que o conceito de raça não existe no Brasil, e que o país é um só”, afirma o pesquisador Campos.
Kataguiri, presidente da Comissão de Educação da Câmara dos Deputados, levanta outro argumento contra o critério racial: para ele, os comitês instituídos pelas universidades para evitar fraudes acabam funcionando como “tribunais raciais”.
“Sou contra discriminação racial, seja positiva ou negativa [e sou contra] aqueles tribunais raciais, que analisam se o sujeito é negro ou não a partir do formato do beiço ou do nariz. São retrocessos que pioram o racismo e levam a constrangimentos”, avalia.
Wallace, da FGV, discorda da exclusão de critérios étnicos.
“Raça, na biologia, realmente é um conceito que não existe. Mas ele é social: todo o nosso sistema se estrutura a partir disso.”
- Reforçar o controle de fraudes
Em 2012, o STF decidiu, por unanimidade, que as cotas raciais são legais. A Corte permitiu o uso de dois critérios: de autodeclaração do candidato ou de classificação feita por terceiros (a fim de prevenir fraudes).
A instauração destes comitês de heteroidentificação, no entanto, não é obrigatória pela Lei de Cotas, no texto atual.
“Muitas pessoas, com base no mito da democracia racial e da miscigenação, se declaram falsamente como negras, só para conseguirem as cotas. É preciso evitar isso”, afirma Wallace Corbo.
“Uma forma de assegurar que não seja um mecanismo problemático é formar comissões plurais, com critérios de decisão estabelecidos. Por exemplo: só excluir um aluno das cotas se todos os representantes da banca votarem contra. É claro que há zonas de incerteza, em que até o próprio candidato vai ter dúvida de como se declarar. Nesses casos, precisamos contar com a boa-fé dele. O objetivo [dos comitês] é só evitar casos muito claros de fraude, de pessoas evidentemente brancas.”
- Garantir mais investimentos e políticas de permanência estudantil
Anna Venturini, do centro de estudos Afro-Cebrap, ressalta que a crise causada pela pandemia e os sucessivos cortes de orçamento nas universidades federais tornam mais urgente que as cotas venham acompanhadas de políticas de permanência estudantil.
Atualmente, como a Lei de Cotas não prevê nenhuma obrigatoriedade de auxílio financeiro, as iniciativas partem voluntariamente das próprias universidades.
“Não basta colocar os alunos no ensino superior: precisamos dar condições para que eles concluam o curso. Com o Sisu, a circulação de estudantes entre as regiões aumentou, mas o custo de vida está elevado. É preciso garantir auxílios financeiros para os alunos”, defende Venturini.
Um exemplo: Debora Mendonça, de 18 anos, é estudante de engenharia mecânica da Universidade de São Paulo (USP), após ingressar por cotas de ex-alunos da rede pública PPI (pretos, pardos e indígenas). Ela mora em São Bernardo, no ABC Paulista, e leva mais de 3 horas para chegar à USP de transporte público.
“Já pensei em desistir do curso. No começo, me senti muito desamparada, porque a discrepância da minha formação de base em relação à dos meus colegas é gritante. Mas não posso ficar me comparando, porque mereço estar lá tanto quanto os outros.”
Debora Mendonça foi aprovada por cotas na Universidade de São Paulo — Foto: Arquivo pessoal
Para as pessoas com deficiência, também contempladas pela cota, as políticas de permanência envolvem outros recursos, como explica Luiza Corrêa, do Instituto Rodrigo Mendes. “A lei é a rampa que deixa os alunos entrarem na universidade. Mas, para eles continuarem lá, precisam de acessibilidade, tecnologia assistiva e comunicação adaptada [como em Libras ou Braille].”
Corbo, da FGV, defende também que haja uma preocupação com a realidade dos alunos cotistas após conseguirem o diploma. “A atual Lei de Cotas não pensa em mecanismos que incentivem a inserção no mercado de trabalho ou as oportunidades na pós-graduação. Poderíamos aprimorar esses pontos.”
O que mudou nas universidades desde o início da Lei de Cotas?
Debora exalta a mudança que a Lei de Cotas promoveu em sua família:
“Minha mãe não sabe ler. Meu pai não terminou o ensino fundamental 1. Tem gente que diz que cota facilita a nossa vida, mas é uma questão de ver a igualdade acontecer. Eu não teria como concorrer com aluno de escola particular”, diz.
A implementação deste tipo de política foi gradual: institutos e universidades federais tiveram de 2012 a 2016 para chegar aos 50% de vagas reservadas para ações afirmativas.
Adriano Senkevics, doutor em educação pela Universidade de São Paulo (USP), estudou quais foram as mudanças nos perfis dos alunos das universidades nesse período.
Cruzando microdados restritos do Censo de Educação Superior e do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), ele descobriu que o grupo mais beneficiado foi o de pretos, pardos e indígenas (veja gráfico abaixo), que saltou 10,7 pontos percentuais entre 2014 e 2016: de 27,7% para 38,4%.
A participação das outras categorias também aumentou, mas em menor proporção: 8,2 pontos percentuais entre ex-alunos da rede pública (no geral) e 6,6 pontos percentuais entre ex-alunos da rede pública de baixa renda.
“Há variações: em universidades que já adotavam ações afirmativas antes da Lei de Cotas, o impacto foi menor. Já instituições do Sul e do Sudeste altamente prestigiadas e seletivas foram mais modificadas”, analisa o pesquisador.
Nas federais de Santa Catarina (UFSC), de Pelotas (UFPel) e da Fronteira Sul (UFFS), por exemplo, a presença de PPI da rede pública mais do que dobrou entre 2012 e 2016.
As diferenças também são observadas dependendo do tipo de curso: os que eram mais restritos à elite, como medicina, passaram a receber um número maior de ex-alunos de escola pública PPI. “As cotas permitem que eles sonhem mais alto”, afirma o pesquisador.
Odontologia é um dos casos mais emblemáticos: de 2012 a 2016, houve um crescimento de 64% na presença de egressos da rede pública em geral e de 125% entre os que são pretos, pardos ou indígenas, mostra o estudo de Senkevics.
Chegar aos dados acima foi um longo processo, porque “o monitoramento da Lei de Cotas é muito falho, e falta transparência do Ministério da Educação”.
“Qualquer acesso aos dados que avaliam a política de cotas passou a ser fruto de iniciativas individuais de pesquisadores ou universidades”, afirma o pesquisador.
Procurado pelo g1, o MEC não se pronunciou até a última atualização desta reportagem.
* Com a colaboração de Emily Santos.
Fonte: G1