Uso do gelo após pancadas: saiba quando evitar e quais ações indicam os médicos e os fisioterapeutas
Uso do gelo após pancadas: saiba quando evitar e quais ações indicam os médicos e os fisioterapeutas
Apesar de generalizada, a crioterapia (uso do gelo) pode ter o efeito de alterar e inibir o processo inflamatório natural, que leva a cura. Mas médicos não condenam o gelo e alegam que ele diminui o inchaço e permite que a retomada da mobilidade e reabilitação não seja tardia.
Por Silvana Reis, g1
Uso de gelo em lesões divide fisioterapeutas e médicos — Foto: Adobe stock
O uso do gelo como tratamento depois de lesões comuns (entorse, pancada forte, tendinite) não é consenso entre os profissionais da saúde. O que está em xeque, sobretudo, é a aplicação logo após uma pancada para diminuir o inchaço e reduzir a dor, o que é questionado. Mas em caso de dor intolerável, mesmo os que evitam o gelo reconhecem que ele pode ser usado.
O argumento dos que são contra o uso como tratamento é que estudos apontam que o gelo freia a inflamação, processo essencial para a recuperação de lesões. Porém, médicos especialistas ainda indicam a aplicação porque o gelo tem outros benefícios. Entidades médicas não têm orientações gerais contra o uso.
1 – Por que e quem desaconselha o uso do gelo?
🧊🚫A polêmica da crioterapia (uso do gelo) existe tanto nos trabalhos científicos quanto entre os profissionais da saúde. A questão central é de que o gelo inibe o processo de inflamação – essencial para a cura. Mas a maioria das sociedades não têm parecer específico sobre o assunto, segundo explica o médico André Pedrinelli, que faz parte da Comissão de Ensino e Treinamento da Sociedade Brasileira de Ortopedia e Traumatologia (SBOT) e é também o presidente eleito da Sociedade Brasileira de Medicina do Exercício e do Esporte (SBMEE).
O assunto foi discutido em artigo publicado no site The Conversation Brasil por pesquisadoras do curso de fisioterapia e enfermagem da Universidade San Jorge, na Espanha, em março deste ano. O artigo explica que o uso de gelo causa o estreitamento dos vasos sanguíneos, o que alivia a dor no curto prazo e reduz a inflamação e o inchaço.
Porém, a inflamação é um processo fisiológico normal do corpo que se recupera de uma lesão e, para que todo o processo de cicatrização ocorra corretamente, a inflamação deve seguir seu curso fisiológico. A explicação é de que tanto o gelo quanto alguns medicamentos anti-inflamatórios modificam o processo inflamatório e promovem processos de recuperação ruim e fibrose, o que pode levar a um tecido que não se regenera adequadamente e é mais suscetível a novas lesões.
O texto cita o protocolo chamado de PEACE and LOVE (PAZ e AMOR), sugerido pelos canadenses Blaise Dubois e Jean-Francois Esculier em 2019. A novidade do protocolo proposto para tratamento de lesões é a busca por evitar medicamentos anti-inflamatórios.
O nome do protocolo é uma sigla que significa:
- protection – proteção (evitar atividades e movimentos que aumentam a dor durante os primeiros dias após a lesão);
- elevation – elevação (elevar o membro lesionado mais alto que o coração sempre que possível);
- avoid anti-inflammatories – evitar anti-inflamatórios (evitar tomar medicamentos antiinflamatórios, pois eles reduzem a cicatrização dos tecidos e evitar gelo);
- compression – compressão (usar bandagem elástica ou fita adesiva para reduzir o inchaço);
- education – educação (o corpo sabe melhor. Evitar desnecessários tratamentos passivos e investigações médicas e deixar a natureza desempenhar o seu papel);
- load – carga ótima (deixar a dor guiar seu retorno gradual às atividades normais. Seu corpo lhe dirá quando não é seguro aumentar a carga);
- optimism – otimismo (condicionar seu cérebro para uma recuperação ideal, sendo confiante e positivo);
- vascularisation – vascularização (escolher atividades cardiovasculares sem dor para aumentar o fluxo sanguíneo e reparar tecidos);
- exercise – exercício (restaurar a mobilidade, a força e a propriocepção, adotando uma abordagem ativa para a recuperação).
As autoras do artigo que destaca e defende o PEACE and LOVE são as fisioterapeutas espanholas Beatriz Carpallo Porcar e Paula Cordova Alegre, também enfermeira. Ao g1, Beatriz diz que o uso de gelo é generalizado, mas pode ter o efeito de retardar a cura. Ela considera especialmente importante não usar o gelo em lesões como entorses, tendinites e outras inflamações.
“Até chegar ao hospital, pode ser bom e necessário aplicar gelo para estancar a inflamação, o sangramento e a dor. O profissional de saúde valoriza isso. O PEACE AND LOVE fala principalmente sobre aquelas lesões comuns, com dor tolerável. Não é algo rígido e obrigatório. Haverá casos em que o gelo deverá ser aplicado. Mas na vida diária e no uso doméstico, os anti-inflamatórios não são mais a primeira escolha”, afirma.
O Dr. André Pedrinelli afirma que o PEACE AND LOVE é um bom protocolo, mas não responde a todas as dúvidas existentes na atividade física. Ele acredita que são necessários mais trabalhos na literatura para ter uma posição mais definida.
“A divergência de opiniões sempre é extremamente saudável quando procuramos soluções para o tratamento de afecções. Termos opiniões diferentes e eventualmente até conflitantes não significa uma briga de um contra o outro, mas é o processo evolutivo científico”, comenta.
2 – Por que o uso do gelo ainda é indicado pela comunidade médica? Mobilidade, fortalecimento e carga: por que elas também importam?
🚶🏋️♂️O conflito de opiniões sobre o uso do gelo é percebido entre médicos e fisioterapeutas. Apesar de ele não ser aconselhado no protocolo mais recente, o PEACE AND LOVE, médicos lembram que o uso do gelo também diminui a dor e o inchaço, permitindo que o paciente volte – em menos tempo – a ter mais mobilidade, e a fortalecer a musculatura, também importantes para a reabilitação.
🥼 Médicos também alegam que o gelo é analgésico, barato e – em muitos momentos – acaba por dispensar o uso de pomadas e sprays, substâncias químicas que têm eficácia muito baixa. Entre os atletas, o uso do gelo ainda é bastante comum e, inclusive, feito por iniciativa própria, segundo Tiago Fruges, médico especializado em ortopedia e traumatologia esportiva na USP.
A reabilitação e cicatrização do aparelho osteomuscular não são dependentes apenas da inflamação, segundo o ortopedista e traumatologista Rafael Barban, formado pela USP e médico assistente do Grupo de Tornozelo e Pé e do Grupo de Trauma do IOT HC FMUSP e membro da Sociedade Brasileira de Ortopedia e Traumatologia.
“A mobilidade articular, fortalecimento muscular e a carga nos membros inferiores são passos importantes da reabilitação precoce e completa. Para podermos executar essas ações, precisamos estar menos inchados e menos dolorosos. Há um equilíbrio entre diminuir o edema e a dor com o processo inflamatório, mantendo algum grau de inflamação para a cicatrização, mas permitindo – de forma segura – iniciarmos a reabilitação. Sendo assim, acredito que exista espaço para o uso do gelo, por curtos períodos, principalmente na fase aguda”, afirma Barban.
O médico Tiago Fruges alerta também que as lesões são diferentes entre si e, muitas vezes, a cicatrização de uma estrutura ligamentar não necessariamente corresponde, por exemplo, a uma melhor resposta funcional.
O médico acrescenta que hoje em dia tem se priorizado voltar mais rápido a dar mobilidade e carga ao membro inferior, inclusive no pós-operatório. E que o paciente lesionado hoje pode o retirar um imobilizador para fazer um trabalho fisioterapêutico e depois o recolocar. “Deixar engessado, parado, sem se mexer, sem pisar, sem encostar, não é a realidade atual”, afirma. Dr. Tiago também destaca que o uso de anti-inflamatórios ainda é um pouco controverso.
O fisioterapeuta esportivo e educador físico Thiago Menezes Lessa Moreira, coordenador do Departamento de Saúde e Fisioterapeuta do Osasco Voleibol Clube/ São Cristóvão Saúde, afirma que é muito incomum um atleta ter problema com gelo. Em raros casos, alguns podem ter alergia. Ele também é a favor de evitar uso do gelo para situações específicas, como lesões crônicas.
O médico André Pedrinelli reconhece que o uso do gelo pode ser um irritante secundário do tecido nervoso, mas afirma que é muito difícil fazer uma pesquisa com embasamento científico não questionável.
“Existem muitas questões culturais envolvidas também. É muito difícil transferir os estudos laboratoriais para a vida real. Depende muito do objetivo do uso do gelo para certa articulação”, declara.
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3 – Como agir em caso de pancadas? O que é possível usar?
O especialista em joelho Sérgio Costa, mestre em ortopedista pela USP, confirma que alguns trabalhos já indicavam que o gelo inibe não só a dor, mas também o início do processo inflamatório, que é essencial a cura, atrasando esse processo.
Mas entre a dor e a cura, que pode levar até oito semanas numa fratura, Dr. Sérgio declara: “Eu fico com o gelo, que já um hábito acertado. Digo aos meus pacientes: faça sempre gelo e vai procurar o pronto-socorro saber o que está acontecendo”.
A fisioterapeuta Beatriz explica que, se a dor ou o edema não forem excessivos, o que se deve fazer é proteger a área e limpar, se houver ferida. E deixar a natureza seguir seu curso reparando o tecido. Em caso de lesão, ela orienta seguir os passos do protocolo de PEACE AND LOVE vigente. Sobre o uso de spray e pomadas, Beatriz afirma que a eficácia é muito baixa de acordo com evidências científicas e que elas podem ser usadas para alívio ocasional da dor, se necessário.
4 – Por quanto tempo devemos usar gelo? E a compressa quente?
O uso do gelo está desaconselhado na maioria das contraturas musculares (rigidez comum na lombar ou no pescoço) e em lesões onde há um ferimento de pele grande, mas pode ser utilizado ao redor do ferimento para diminuir o inchaço, segundo a Dra. Marina Tommasini Carrara de Sambuy, Ortopedista do Hospital Nove de Julho, em São Paulo.
Para contraturas musculares, é mais utilizada a compressa quente, que não tem limite de tempo. A ortopedista diz ainda que o contraste quente e frio pode ser utilizado com bons resultados em alguns casos de lesões crônicas.
O uso do gelo geralmente é indicado por médicos em traumas agudos, principalmente nos membros superiores e inferiores, por um período de 10 a 15 minutos, nos quais não há lesão da pele. O médico Rafael Barban alerta que pacientes com problemas vasculares devem ser avaliados com atenção e evitar o uso do gelo principalmente nas extremidades, como os dedos das mãos e dos pés.
Como agir no caso de pancadas na cabeça
Segundo a presidente da Associação de Neurologistas do Rio de Janeiro (Anerj), Shenia Novis, recomenda-se o uso de gelo para o caso de pancadas na cabeça, após o choque, para reduzir a intensidade do edema, da dor local e diminuir a formação de maiores hematomas (o famoso “galo”). Isso devido ao rompimento de vasos sanguíneos locais, que extravasa sangue entre a pele e o crânio.
“O frio gera a vasoconstricção, a diminuição do diâmetro dos vasos. Com isso, diminui o extravasamento do sangue dos vasos já rompidos. Em consequência, o edema também. O edema – no caso de trauma craniano leve – não tem risco, porém quanto maior, pior o incômodo do paciente”, explica.