280 crianças e adolescentes trans fazem transição de gênero no HC da USP; veja vídeos com o que eles contam sobre esse processo
Cem adultos que se identificam como transgêneros também são acompanhados pelo ambulatório transdisciplinar do Hospital das Clínicas. Pessoas trans podem passar por intervenções médicas como bloqueio da puberdade, hormonização e cirurgia de redesignação sexual.
Jovens trans falam sobre transição de gênero — Foto: Reprodução/Divulgação/Juan Silva/g1 Design
Atualmente, 380 pessoas identificadas como trans fazem transição de gênero gratuitamente no Hospital das Clínicas (HC) da Universidade de São Paulo (USP), na capital paulista. Desse total, 100 são crianças de 4 a 12 anos de idade, 180 são adolescentes de 13 a 17 anos e 100 são adultos a partir dos 18 anos.
Para lembrar o Dia da Visibilidade Trans, celebrado neste domingo (29), o g1 conversou com transgêneros que estão em busca ou conseguiram passar por processos como o bloqueio da puberdade, a hormonização cruzada e a cirurgia de redesignação sexual. Médicos especializados no assunto também foram ouvidos.
Nesta reportagem, você vai conhecer as histórias de Gustavo, Stefan, Callebe, Sofia e Mayla.
Jovens trans contam como estão sendo suas transições — Foto: Reprodução/Arquivo pessoal/Juan Silva/g1 Design
Gustavo Queiroga, 8 anos
‘Percebi que o Gustavo era uma criança trans quando ele tinha 2 anos’, diz mãe
“Eu me sentia muito inseguro. Sentia que não tinha pessoas confiáveis, mas eu tinha minha mãe, minha família”, disse ao g1 Gustavo Queiroga, de 8 anos.
Ele faz acompanhamento no Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual (Amtigos) do HC da USP. “Um dia, eu ia conseguir o que eu queria. E eu consegui.”
O menino trans, que biologicamente nasceu com características físicas femininas, mora com a mãe e a família na capital paulista.
“Eu percebi que o Gustavo era uma criança trans quando ele tinha 2 anos de idade. Ele sempre rejeitava tudo que era feminino”, falou Jaciana Batista Leandro de Lima, chefe de cozinha e assistente de cabeleireiro de 35 anos
Amtigos
A procura pelo atendimento na rede pública de saúde é tão grande que o Amtigos foi obrigado a suspender as triagens em novembro de 2022, por não conseguir atender a demanda.
Existe a possibilidade de que elas voltem a ser realizadas a partir de fevereiro deste ano. Enquanto isso, 160 famílias que têm crianças e adolescentes que se identificam como transgêneros estão na fila de espera da triagem, que é feita por uma equipe multidisciplinar de especialistas.
Além dos filhos, a família também é acompanhada durante o processo de transição.
O Amtigos foi criado em 2010 para atender gratuitamente adultos pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
O Ministério da Saúde também disponibiliza gratuitamente para pessoas trans o Processo Transexualizador em 12 locais habilitados pela pasta do governo federal. Veja abaixo onde ficam.
O Amtigos deixou de atender adultos em 2015, quando notou que eles tinham outros equipamentos públicos e até particulares de saúde para recorrer. E também por notar uma busca maior de responsáveis por crianças e adolescentes trans pelo serviço em São Paulo.
Os maiores de idade que ainda são atendidos no Amtigos são remanescentes das primeiras turmas ou eram menores quando entraram no programa de transição.
131 pessoas trans foram mortas no Brasil em 2022
Pela lei brasileira, a operação para adequação sexual só pode ser realizada em adultos acima dos 18 anos. Esta é a última etapa do processo de transição ou acompanhamento.
Em homens trans, além da retirada dos seios e útero, a genitália feminina pode ser modificada para se aproximar a um órgão sexual masculino. Nas mulheres trans, existe a possibilidade de se retirar o pênis e transformá-lo numa espécie de vagina.
Antes da cirurgia, no entanto, há a hormonização, que consiste na utilização de hormônio do sexo oposto no paciente. Injeções são aplicadas regularmente em adolescentes a partir dos 16 anos, seguindo recomendação do Conselho Federal de Medicina (CFM).
Por exemplo, pessoas que nasceram com o sexo biológico masculino, mas depois se identificam como garotas trans, recebem o estrogênio. Este hormônio feminino irá causar mudanças corporais desejadas, entre elas o aumento das mamas.
Em uma situação inversa: quem nasceu com a genitália feminina, mas se vê como um garoto trans, receberá a testosterona. O hormônio masculino levará ao aparecimento de barba, por exemplo.
As crianças e os adolescentes atendidos na USP podem receber um bloqueador hormonal para não entrarem na puberdade e desenvolverem características físicas com as quais não se identificam. Nos garotos trans, o bloqueio impedirá a menstruação e o crescimento das mamas. Nas meninas trans, os pelos do rosto deixarão de crescer, e a voz não engrossará.
A aplicação do bloqueio varia entre cada paciente, mas pode acontecer entre 9 a 13 anos em crianças com características biológicas femininas e de 10 a 14 anos naquelas que têm o fenótipo masculino.
“Atualmente temos disponível no Brasil uma injeção para fazer o bloqueio hormonal assim que a criança for entrar na puberdade”, disse ao g1 a endocrinologista pediátrica Leandra Steinmetz, do Instituto da Criança e do Adolescente do HC da USP.
Stefan Vicenzo da Cruz, 25 anos
‘Eu não me encaixava na caixinha que era posta sobre mim’, diz Stefan Vicenzo, homem trans
O promotor de vendas Stefan Vicenzo Barreto Soares da Cruz tem 25 anos e é um homem trans. Ele contou ao g1 que fez toda a sua transição no Hospital das Clínicas da USP, mas pela rede particular de saúde.
“Eu tive que fazer pelo particular porque na rede pública demorava muito, tinha muita burocracia”, falou Stefan, que passou pela cirurgia de mastectomia, para retirada das mamas. Ele ainda tem vontade de retirar o útero. Mas não decidiu se fará a redesignação sexual.
Segundo especialistas, não é preciso se submeter ao processo de transição para ser considerada uma pessoa transgênera. Isso vale tanto para homens quanto mulheres trans.
Sofia Albuquerck e Mayla Phoebe, 21 anos
Sofia Albuquerck, mulher trans, conta como foi o seu processo de redesignação sexual
As irmãs gêmeas Sofia Albuquerck e Mayla Phoebe pagaram para ter o corpo adequado ao gênero com o qual se identificam: o feminino. Elas tinham nascido biologicamente com o sexo masculino.
Dois anos antes, quando tinham 19 anos, elas saíram de Minas Gerais para serem operadas numa clínica particular em Blumenau, Santa Catarina. As duas passaram por cirurgia de redesignação sexual. Antes, já haviam colocado implantes de silicone nos seios.
“A partir dos meus 8 anos para cima, até os 14, eu começava a não entender mais o meu órgão genital. Isso deu uma disforia tão grande, tão grande, nessa época, que eu não entendia ao certo. Então até [fui] pesquisar e entender mais e começar minha transição”, disse Sofia ao g1.
Atualmente ela namora um rapaz e estuda engenharia civil em Franca, interior paulista.
“Quando era adolescente, eu já tinha repúdio com meu órgão genital”, diz mulher trans
“Quando eu era adolescente eu já tinha repúdio, eu tinha disforia tão grande com meu órgão genital, porque eu tinha dificuldade para tomar banho, porque eu sentia pavor em ver”, falou Mayla, que mora na Argentina, onde estuda medicina.
“A gente [ela e a irmã] sempre esteve junta. O maior presente que Deus deu em ‘mi vida’ foi alma de ser gêmea.”
A respeito da cirurgia de readequação, o médico José Carlos Martins Júnior, da Transgender Center Brazil e que operou as gêmeas, explicou que nem sempre ela é necessária.
“A mulher trans, ela não tem indicação de cirurgia. Ela é uma mulher trans pelo simples fato de se entender como tal. Quando a cirurgia entra? Quando há o diagnóstico da chamada ‘disforia de gênero’. A disforia de gênero não é uma doença, mas ela é um mal-estar.”
Cirurgião explica quando há indicação para cirurgia em mulheres trans
Variedade de gênero
“O termo transgênero é um termo guarda-chuva e se refere a qualquer variedade de gênero, sejam transexuais, travestis, gênero não binário, agênero, gênero fluído”, disse ao g1 o psiquiatra Alexandre Saadeh, coordenador do Amtigos.
Segundo o especialista, no caso dos transgêneros, existe uma hipótese científica de que essa identidade de gênero se manifeste no cérebro na formação do bebê, ainda na fase intrauterina, depois do desenvolvimento dos órgãos sexuais.
Em outras palavras, de acordo com Saadeh, isso quer dizer que alguém que nasce com a genitália feminina não necessariamente terá um cérebro feminino. E vice-versa.
“Aliás, é importante falar que a questão trans, a transexualidade ou qualquer variabilidade de gênero não é considerada uma doença”, disse o psiquiatra.
Dia da Visibilidade Trans: Alexandre Saadeh fala sobre o AMTIGOS
Em 2018, a Organização Mundial de Saúde (OMS) retirou a transexualidade da lista de transtornos mentais da Classificação Internacional de Doenças (CID) e passou a ser considerada uma “condição”. Apesar disso ela continua no CID, mas numa categoria chamada de “saúde sexual”.
Oficialmente, a transexualidade é citada com o termo “incongruência de gênero” na CID-11, e descrita como “uma incongruência marcada e persistente entre o gênero que um indivíduo experimenta e o sexo ao qual ele foi designado”.
Essa inadequação vivenciada por transgêneros pode provocar o que especialistas chamam de “disforia de gênero“, que é quando uma pessoa não se sente confortável com as características masculinas ou femininas de seu corpo.
“É importante o diagnóstico no sentido de viabilizar e legalizar uma intervenção médica que se faça necessária. Desde hormonização até cirurgia”, falou Saadeh.
Callebe Ferreira Marques, 14 anos
Garoto trans fala sobre apoio da mãe e mudança após se assumir: ‘sou muito orgulhoso’
Callebe Ferreira Marques, de 14 anos, não fez nenhum bloqueio hormonal, mas espera começar a tomar hormônios masculinos a partir dos 16 anos. O estudante também pretende fazer a cirurgia para a retirada dos seios depois dos 18 anos.
“Parece que eu saí de uma prisão, um casulo”, disse o menino, que mora com a mãe na Zona Sul de São Paulo, ao falar sobre o que mudou desde que assumiu sua transexualidade.
Veja onde fica o Amtigos — Foto: Guilherme Luiz Pinheiro/g1-Design
*Colaboraram: Amanda Polato, Mariana Medicelli, Iolanda Paz, Fernanda Fialho, Rafael Leal, Viviane Mateus, Patrícia Albuquerque, Juan Silva e Guilherme Luiz Pinheiro, do g1.
Fonte: G1