Famílias que vivem em ocupações no Largo Paiçandu, no Centro, temem ser despejadas pela Prefeitura de SP: ‘Somos invisíveis’
Dois edifícios da região foram incluídos em projeto da prefeitura que visa transformar a área em polo estudantil. Moradores de ocupações, no entanto, afirmam que não foram incluídos no projeto e não receberam nenhuma proposta de habitação.
Ocupação Rio Branco, no Centro de São Paulo. — Foto: Reprodução/ TV Globo
Cerca de 300 famílias que vivem em uma ocupação no Complexo Boticário, no Centro de São Paulo, afirmam que não foram incluídas pela prefeitura no projeto Paiçandu Cultural, que pretende transformar o local em uma espécie de polo estudantil.
“Eles agem como se a gente não existisse, como se o imóvel estivesse completamente vazio e como se aqui não tivesse ninguém, nenhuma alma. É assim que estamos nos sentindo com essa situação, completamente ignorados, invisíveis “, afirma Eliofábia Rodrigues da Silva, de 31 anos, que mora na ocupação há 13 anos.
O projeto Paiçandu Cultural visa revitalizar e ceder quatro edifícios do largo – o Complexo Boticário, o ArtPalácio, o edifício Independência e a Galeria Olido – e o entorno no leque de parcerias público-privada (PPP) da prefeitura.
Segundo os moradores:
- O projeto está sendo realizado “no escuro”, sem a participação das pessoas que vivem nas ocupações;
- Não foi apresentada nenhuma proposta habitacional para as famílias que estão nas ocupações;
- Houve uma audiência pública para discutir o projeto, mas eles não foram informados do evento pela prefeitura;
- A prefeitura não divulgou informações sobre o que será feito com os edifícios.
Ainda de acordo com quem vive na ocupação, o Complexo Boticário conta com um prédio de quatro andares e uma área térrea. Ao todo, são 69 apartamentos, sendo que cerca de oito deles, em cada andar, são de um único cômodo. Em três andares, os apartamentos possuem banheiros. No último, é compartilhado.
Em nota, a Prefeitura de São Paulo informou que dará continuidade ao projeto e “seu respectivo cenário de implementação” e que “caberá a Secretaria Municipal de Habitação tratar das ocupações dos edifícios”.
Segundo a própria administração municipal, o projeto faz parte do Todos Pelo Centro e visa transformar as áreas da seguinte maneira:
- Galeria Olido: reforma e ativação de empreendimento e a posterior oferta de 3,1 mil vagas de educação superior, sendo 30% destinadas a bolsistas, bem como a disponibilização de infraestrutura voltada à cultura;
- Edifício Independência: modernizar o empreendimento tombado para a instalação de um Hub de Inovação, contemplando um Fab Lab com espaço de co-criação com locação de equipamentos; 260 vagas por ano em programa de aceleração de startups, sendo 30% de vagas para bolsistas; 2.000 m² de área para locação comercial, sendo 30% destinada a bolsistas, e 230 posições para coworking, com locação de salas de trabalho e de reunião, e igual previsão de 30% de vagas para bolsistas.;
- Art Palácio: transformar o cinema histórico tombado, com capacidade para 3.000 pessoas, para a disponibilização de 59 apartamentos mobiliados – sendo 50% destes imóveis destinados a bolsistas;
- Complexo Boticário: construção de 308 apartamentos mobiliados para locação, com 50% de vagas destinadas a bolsistas, e criação de fachada ativa no térreo.
Galeria Olido, no Centro de SP. — Foto: Deslange Paiva/ g1 SP
A prefeitura informou que ainda não há licitação para o projeto. A previsão é que o núcleo comece a funcionar em cinco anos.
“Nós não somos contra o projeto, achamos legal, mas tem um monte de prédio vazio em São Paulo, sinceramente não entendi porque focar nessa região. Não sabemos de onde vêm esses alunos, qual a demanda, quem são eles. O que a gente entende é que está sendo iniciado um projeto de higienização da área. Eles falam de movimentar o Centro, mas as famílias que estão aqui já movimentam o Centro”, afirma Márcia Araújo, assistente social do Movimento Sem Teto do Centro, que acompanha as famílias da ocupação.
Em 10 de janeiro, foi realizada uma audiência pública para tratar do assunto, porém, os moradores que vivem na ocupação alegam que não foram informados sobre a audiência.
“Só soubemos [da audiência pública] por causa de uma jornalista que entrou em contato com a coordenação do movimento perguntando sobre o projeto. Mobilizamos as famílias para poder participar porque achávamos que era um projeto legal, que beneficiaria todos, mas todas as famílias daqui foram excluídas”, afirma Márcia.
“Na audiência não foi falado sobre habitação em nenhum momento. O que deu a entender é que o complexo está completamente vazio, e eles precisam povoar. Não teve discussão”, completou.
Corredor da Ocupação Rio Branco. — Foto: Deslange Paiva/ g1 SP
Medo de serem retirados do local
Os moradores da Ocupação Rio Branco estão em clima de tensão. Sem saber como está andando a proposta da prefeitura, eles temem ser retirados do local a qualquer momento.
“Você é da prefeitura? Toda vez que aparece alguém aqui agora a gente fica tenso”, questionou Everaldo Silva de Jesus, que vive há três anos na ocupação e trabalha com entregas por aplicativo. Ele estava voltando para casa quando o g1 esteve na Ocupação Rio Branco.
Eliofábia complementa: “Nós estamos com medo, estamos inseguros. Se eu falar para você que estou tranquila vou estar mentindo. Eu tenho três filhos, se nos tirarem daqui nós não temos para onde ir. Mas estamos preparados para qualquer coisa. Se preciso, vamos acampar na porta da casa do prefeito, não vamos cair sem luta. Quem não luta está morto”.
Apartamento na Ocupação Rio Branco. — Foto: Deslange Paiva/ g1
‘Embraquecimento’ cultural
O advogado e coordenador da Central de Movimentos Populares em São Paulo, Benedito Roberto Barbosa, participou da audiência pública com a prefeitura e reclamou da inexistência de projetos voltados para a cultura negra, que é fortemente presente na região.
“O ArtPalácio e o Boticário estão com moradores, juntando tudo deve dar quase 500 famílias naquela região. Então para mim isso não tem outro nome, é uma proposta de gentrificação, ou melhor, é um embraquecimento da região. Querem transformar o local em um território ‘clean’. Ali é território negro, de muitas manifestações culturais. O movimento negro foi completamente desconsiderado no projeto que nos apresentaram”, afirmou.
“Acaba com tudo que é popular para colocar uma coisa de interesse imobiliário. É uma lógica de expulsar, eles chamam isso de ‘urbanismo de ativação’, a gente está chamando de ‘urbanismo de exclusão’. Vão expulsar as famílias de imediato. Não tem proposta para a questão educacional e mesmo onde disseram que vão atender estudantes a gente não sabe qual vai ser o custo dessa tal locação social porque vai ser administrada por uma empresa privada”, emenodu.
Benedito afirmou também que as entidades e os movimentos sociais da região estão em contato com a prefeitura para tentar discutir melhor o projeto.
Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, no Largo Paiçandu. — Foto: Deslange Paiva/ g1 SP
O entorno da Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, que fica no largo, também foi incluído no projeto para receber a implementação de quiosques.
Em 19 de janeiro, a Defensoria Pública de São Paulo também emitiu um documento contestando o projeto por não contemplar as famílias e recomendando que o projeto seja paralisado.
O que diz a prefeitura
Em nota, a Prefeitura de São Paulo informou que “a consulta pública do projeto Paiçandu Cultural, que indicou sugestões iniciais de projetos que poderão ser desenvolvidos no local, foi encerrada e as contribuições recebidas serão avaliadas”.
Disse ainda que optou “pela continuidade do projeto e seu respectivo cenário de implementação” e que “caberá a Secretaria Municipal de Habitação tratar das ocupações dos edifícios, tomando as providências cabíveis para o tradicional atendimento das famílias envolvidas”.
Fonte: G1