Policiais de SP reclamam de descaso da corporação com problemas de saúde mental; suicídios cresceram de 2019 a 2021
Policiais com ansiedade ou depressão dizem que não conseguem afastamento pelo período indicado por médicos psiquiatras de fora da corporação. Polícia Militar de SP afirma que tem um amplo programa voltado à promoção da saúde mental.
Policiais de SP reclamam de atendimento para problemas de saúde mental na corporaçãohttps://9aa718c2c736203dd344270bb7575653.safeframe.googlesyndication.com/safeframe/1-0-38/html/container.html
Policiais militares do estado de São Paulo relataram descaso da corporação em relação a problemas de saúde mental. Em entrevistas à TV Globo, os militares informaram haver desconfiança por parte das chefias, recusa de licenças médicas e até casos de oficiais que procuraram a Justiça para comprovar que estão doentes e obter o afastamento.
Um levantamento da própria polícia mostra que houve um crescimento dos suicídios entre PMs de 2019 a 2021. Foram 22 casos em 2019, número que subiu para 33 em 2020 e se manteve estável em 34 casos em 2021. Neste ano, já foram registrados 14 suicídios na corporação, o que corresponde a 41% do número verificado em 2021 em apenas um terço do ano.
Os números do ano passado superam em quatro vezes a média estabelecida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para considerar a situação epidêmica para suicídios.
Carro da Polícia Militar na Vila Aeroporto, em Campinas, no interior de São Paulo, em 18 de janeiro de 2022 — Foto: LUCIANO CLAUDINO/CÓDIGO19/ESTADÃO CONTEÚDO
Em nota, a Polícia Militar de SP disse que tem um amplo programa voltado à promoção da saúde mental e à prevenção de episódios extremos, e que possui parcerias com entidades e associações públicas e privadas voltadas ao atendimento médico de pacientes. A corporação disse ainda que trabalha para ampliar o quadro de profissionais da saúde para atuar no setor.
A TV Globo fez diversos pedidos para entrevistar um representante do setor médico da PM, mas não foi atendida. Foram solicitados detalhes do tratamento e também o número de psiquiatras do programa de apoio, mas nenhum dos dois pedidos foi atendido.
Para a pesquisadora Fernanda Cruz, do Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da USP, houve avanços na conscientização sobre o tema, mas ainda há um longo caminho pela frente.
“Não é uma sensibilização generalizada. A gente tem muita resistência interna ainda. Tem muitos policiais que acham que o outro está fingindo, tem muito comandante que acha que esse tipo de doença é frescura, que o o policial está dando desculpa para não voltar para o trabalho, que na verdade ele quer pegar uma licença remunerada e trabalhar em outras coisas”, explicou.
“A gente ainda tem muita resistência, principalmente porque a gente tá falando de um ambiente muito masculinizado, e é como se não coubesse o policial que não corresponde a essa figura heroica”, completou.
Para a especialista, que estuda o tema há mais de uma década, a permanência desses agentes no serviço, apesar da indicação de afastamento, traz riscos para a população.
“Quando a gente tem um policial trabalhando adoecido na rua, esse policial não está colocando em risco só ele mesmo, ele está colocando em risco a sociedade. Ele está colocando em risco o colega dele, todo mundo”, afirmou.
Relatos de policiais
Um dos policiais ouvidos pela reportagem está na corporação há mais de 15 anos e disse que está perto de desistir da carreira.
Ele recebeu diagnóstico de ansiedade, depressão e síndrome do estresse pós-traumático, que é uma doença que pode aparecer depois de uma experiência de violência, por exemplo.
O médico que o atendeu fora da instituição explicou, em um relatório, que o policial esteve em atendimento psiquiátrico marcado por angústia, apatia e oscilação de humor e que não apresenta condições de trabalho. Por escrito, o psiquiatra recomendou o afastamento por 60 dias. Mas, segundo o policial, o afastamento concedido pela junta de médicos da polícia foi bem mais curto.
“Na maioria das vezes ou quase sempre eles recusam. O meu médico psiquiatra falou para mim: sempre que vai chegando o período de você voltar para o serviço, eu vejo que você fica mais tenso. Nem os remédios dão mais efeito em você. Eu tenho que aumentar a dose, a dosagem, tudo”, disse o policial.
“Então, às vezes, o médico que eu faço acompanhamento me dá 30 dias de afastamento, 60 dias, 90 dias. Eu chego na PM com uma indicação de 90 dias, e a PM aceita 10 dias ou, na maioria das vezes, não aceita nenhum dia”, relatou.
O policial disse ainda que teve de conviver com a desconfiança de colegas e superiores.
“Um oficial perguntou para mim, como que eu estou há um tempo tratando, usando medicamento, e eu não melhoro, eu nunca melhorei. Eu já ouvi isso da junta: ‘Você não tá feliz, polícia? Sai fora, pede baixa'”, contou.
A situação fez o oficial cogitar abandonar o serviço. “Eu não sei até que ponto que eu vou aguentar. Eu não sei, mas eu estou sentindo que tá já nas últimas, não sei mais o que vou fazer. Como era meu maior sonho, entrar pra polícia, eu nunca imaginei, eu não me via chegar nesse ponto de querer pedir baixa”, declarou.
Ações judiciais
Segundo o advogado Marcos Manteiga, que dirige uma associação voltada aos direitos humanos dos policiais, há casos de PMs que procuraram a Justiça pra comprovar que estão doentes.
“É uma negligência muito grande por parte do alto comando. É uma omissão. Eu vejo isso como um crime até e só deixa os nossos policiais ficarem mais doentes”, disse o diretor jurídico da Associação Organizacional Nacional de Direitos Humanos dos Agentes da Segurança Pública (Ondhas).
Outro PM com mais de dez anos de serviço relatou o mesmo problema com as licenças por problemas de saúde. Ele contou que já foi mandado de volta ao trabalho mesmo com diagnóstico de depressão e transtorno bipolar.
“Cheguei a trabalhar doente. Trabalhei doente, rejeitaram o laudo médico. E piora [a saúde mental] porque é o seguinte, as pessoas te olham diferenciado, achando que você tem frescura, que você está fazendo corpo mole”, declarou.
Fonte: G1