Estudantes acusados de roubar carro são agredidos e ameaçados de morte por PMs na Zona Leste de SP, afirma família
Estudantes acusados de roubar carro são agredidos e ameaçados de morte por PMs na Zona Leste de SP, afirma família
Secretaria da Segurança Pública nega agressões, afirma que jovens confessaram crime e dono do veículo os reconheceu. Entretanto, mães dos jovens relatam que eles foram coagidos.
Câmera de segurança flagra momento em que adolescentes são abordados por PMs na Zona Leste
Dois estudantes de 14 anos, acusados de roubar um carro na Zona Leste de São Paulo em 16 de maio, foram agredidos e ameaçados de morte por policiais militares, segundo denúncia de familiares. Um dos adolescentes contou que chegou a ter o braço queimado com cigarro. Ao g1, as mães dos jovens afirmam que eles são inocentes.
Vinicius* e Henrique* relatam que foram apreendidos em uma quinta-feira à noite, enquanto voltavam a pé da casa de um amigo, onde estavam jogando videogame.
Imagens de uma câmera de segurança registraram o momento da abordagem no muro da Escola Municipal de Ensino Fundamental (Emef) Júlio de Grammont, localizada na Travessa Meiri, na região de São Rafael (veja vídeo acima).
- A gravação mostra Vinicius e Henrique caminhando às 20h57 na rua, quando uma viatura se aproxima e para.
- Três policiais militares descem do carro e dão início à abordagem. Com as mãos atrás da cabeça, os estudantes encostam no paredão e são revistados.
- Após seis minutos, eles são algemados, colocados na viatura às 21h03 e levados para outro local.
- De acordo com o registro do boletim de ocorrência, o 49° Distrito Policial (DP) de São Mateus foi notificado sobre o caso às 22h59.
Segundo a denúncia das famílias, após a abordagem, os jovens não foram levados diretamente para a delegacia. Os PMs teriam estacionado a viatura em uma rua erma, próximo a uma praça, onde não havia moradores transitando. Os oficiais teriam então agredido e ameaçado os adolescentes. O objetivo era obrigá-los a assumir a autoria do crime, de acordo com os familiares.
A mãe de Vinicius contou ao g1 que, na delegacia, percebeu que o filho estava com o rosto e o pescoço machucados. “Ele contou que apanhou. Ele foi queimado, porque eu vi o braço dele e estava realmente queimado de cigarro. Eles [policiais] bateram neles dentro da viatura”, afirmou a mulher que prefere não ser identificada por medo de represálias.
A polícia nega as agressões e afirma que eles foram flagrados dentro do carro roubado.
Confira abaixo as versões dos policiais, dos adolescentes na delegacia e das mães deles.
Assalto
O motorista, de 60 anos, de um Chevrolet Onix de cor prata, foi roubado na Rua Lourenço Leite Penteado, 130, no Parque São Rafael, em 16 de maio. À Polícia Civil, ele disse estar parado, quando foi cercado por quatro pessoas.
Um dos suspeitos abriu a porta do motorista, puxou a vítima pelo braço e ordenou: “Desce, desce, perdeu”. Os assaltantes entraram no carro e o levaram. O idoso disse que não viu nenhuma arma de fogo com o grupo durante a ação.
Logo em seguida, ele ligou para a Polícia Militar denunciando o roubo. Após cerca de dez minutos, o proprietário do veículo recebeu um telefonema, sendo orientado a comparecer no 49° DP.
Versão dos PMs
Adolescentes estavam caminhando quando foram abordados pela PM — Foto: Reprodução
No boletim de ocorrência, o cabo Leandro Freitas Menezes e o soldado Igor Vianna da Silva, da 1ª Companhia do 38° Batalhão, relataram estar em patrulhamento, quando viram o Chevrolet Onix na contramão da Rua Bandeira de Aracambi – a cerca de 1,2 quilômetro do local do assalto.
Segundo os PMs, o veículo era ocupado por três suspeitos: Vinicius, Henrique e um terceiro jovem que não foi identificado. Os agentes então emparelharam a viatura com o Onix, e os ocupantes desembarcaram e se dividiram para fugir.
O cabo Freitas correu atrás do terceiro suspeito, porém não conseguiu detê-lo. Enquanto o soldado Vianna – com auxílio de mais dois policiais – conseguiu apreender Vinicius e Henrique.
Na delegacia, o PM afirmou que os adolescentes caíram no chão durante a fuga e se lesionaram levemente, além de reforçar que “não houve qualquer tipo de agressão aos menores”. O soldado Vianna ainda disse que feriu um dos braços ao cair na perseguição.
O caso foi registrado como ato infracional equiparado ao crime de roubo e apreensão de veículo no 49° DP, onde o proprietário do Onix reconheceu os estudantes como autores.
Versão de Vinicius e Henrique na delegacia
Vinicius e Henrique confessaram o crime durante o depoimento na delegacia. De acordo com o boletim de ocorrência (B.O.), os estudantes relataram que iriam vender o carro roubado a um desmanche e cada um receberia R$ 700.
Em relação à dinâmica do assalto, Vinicius teria assumido a direção do veículo, enquanto Henrique ocupou o banco do passageiro. Nenhum dos adolescentes soube informar o nome da terceira pessoa, que teria participado da ação e portava uma arma de fogo. Ele teria entrado no banco traseiro do Onix.
À Polícia Civil, eles corroboraram a versão dos PMs e afirmaram que caíram durante a fuga. Depois do registro do B.O., os jovens foram internados na unidade da Fundação Casa no Brás, no Centro da capital.
Entretanto, familiares dos adolescentes conversaram com o g1 e apresentaram uma versão diferente dos fatos.
Versão das mães dos jovens
A mãe de Vinicius conta que, no dia da apreensão, o filho foi para a escola no período da manhã. À tarde, ele e Henrique foram até a casa de um primo jogar videogame, algo que faziam rotineiramente.
“Foi dando o horário [de ele voltar para casa], e eu comecei a mandar mensagem para ele. Em um certo momento, a mensagem foi visualizada, mas não foi respondida. Eu liguei e também não me atenderam. Quando foi mais ou menos umas 22h, me ligaram do celular dele falando que estava detido na delegacia. Aí eu fiquei doida e liguei para o pai dele”, relembra.
A mulher foi com o ex-marido até a delegacia e encontrou os jovens dentro da viatura. Quando questionou o filho sobre o que estava acontecendo, Vinicius disse que já roubava há um tempo para ajudar a família. “Só que a gente vê sinais desse tipo de coisa, ele nunca apareceu com dinheiro nem nada”, relatou a mãe.
Somente quando estava internado na Fundação Casa, no dia seguinte, Vinicius contou o que realmente tinha ocorrido, segundo o relato da mãe. Ele estava com medo de sofrer represálias dos policiais, por isso assumiu o roubo.
“Ele contou que não tinha feito aquilo. Bateram nele falando que iam matá-los se eles não falassem que tinham pegado o carro. Falaram que o meu filho estava dirigindo, mas ele nem sabe dirigir […] Ele falou que colocaram a arma no joelho deles, porque estavam algemados. O tempo todo coagindo e ameaçando.”
“Tem muita coisa errada nesses lugares [na periferia]. Acho que eles [policiais] pensam que todo mundo é igual. É aquela coisa: ‘Eles são menores de idade, assumiram, vão passar uns meses na Fundação e vai ficar por isso mesmo’. Eles tinham que pegar alguém. Eu acredito que por a gente morar na periferia, a gente é discriminado.”
Ao g1, a mãe de Henrique também compartilhou que percebeu que algo de errado havia ocorrido quando chegou ao 49° DP. “Ele estava no porta-mala com o Vinicius. Henrique com o rosto todo machucado. O policial deu um murro na cara dele. O pescoço todo vermelho, porque ele enforcou Henrique”, descreve.
Henrique também só contou à família que não tinha roubado o carro quando já estava internado na Fundação Casa.
Durante o registro do B.O., os policiais o levaram até um pronto-socorro da região. No trajeto, o adolescente contou à mãe que recebeu novas ameaças: “Se vocês não falarem o que a gente falou, a gente vai matar você e seu amigo, e jogar lá atrás no rio”.
“Os meninos nunca passaram por isso. Os bichinhos vão falar o que estão mandando para não acontecer nada com eles. Ele ficou com trauma. Eu olhava para o meu filho, e ele tremia e chorava. Eu disse: ‘Fica em paz que Deus vai fazer Justiça. Você não vai pagar pelo que você não fez”‘.
Após cinco dias, a Justiça de São Paulo revogou a internação provisória dos estudantes. Eles já voltaram para casa e estão frequentando a escola. Entretanto, com medo, as famílias compartilharam que não deixam mais os adolescentes andarem sozinhos na rua.
Advogado diz que houve tortura
Daniel Rosario, advogado de defesa de Vinicius, classifica a conduta dos PMs como tortura, abuso de autoridade e fraude processual. “Acredito que a conduta dos policiais seja creditada à postura de maus profissionais e, neste caso, eles usam a farda para cometer crimes e, de alguma forma, estão protegidos pela farda e pela sensação que possuem respaldo para gerir suas ações, mesmo que seja ilícita e ilegal”, declarou.
O advogado também aponta uma série de inconsistências nos depoimentos dos policiais ao compará-los com as imagens da câmera de segurança:
- Os adolescentes estavam conversando e andando no momento da abordagem, ou seja, não houve perseguição a pé;
- Os ferimentos dos estudantes não foram provocados por queda, e as lesões no braço de Vinicius são arredondadas e têm características de queimadura;
- Vinicius e Henrique não sabem dirigir.
Rosario já solicitou à Justiça as imagens das câmeras corporais dos policiais e o rastreamento do GPS da viatura. Ele ainda aguada o resultado dos exames de corpo de delito realizados na Fundação Casa.
Procurada, a Defensoria Pública de São Paulo confirmou que representa a defesa de Henrique, porém, como o caso tramita em segredo de Justiça, não vai se manifestar sobre o caso.
O que diz a SSP
“Os dois infratores, de 14 anos, foram apreendidos após serem flagrados com um carro roubado na noite de 16 de maio, no Jardim Rodolfo Pirani. Ao verem a polícia, os dois saíram do veículo e tentaram fugir a pé, mas foram detidos. Questionada, a dupla confessou o crime e, na delegacia, foi reconhecida pela vítima – um homem, de 60 anos, que inclusive descreveu a conduta de cada um na ação criminosa. O caso foi registrado no 49º Distrito Policial. O veículo passou por perícia e foi devolvido à vítima. Exames de corpo de delito foram realizados nos adolescentes e os resultados dos laudos, encaminhados à Vara da Infância e Juventude, que prosseguirá com as apurações relativas ao caso. A Polícia Militar é uma instituição legalista e mantém sua Corregedoria à disposição para registrar e apurar qualquer denúncia contra seus agentes”.
*Os nomes dos adolescentes foram substituídos para preservar suas identidades
Fonte: G1