Homem pode ser condenado a até 15 anos de prisão após passar por três reconhecimentos irregulares, aponta defesa


Juíz bate com martelo durante julgamento — Foto: Lex van Lieshout/ANP/AFP

Juíz bate com martelo durante julgamento — Foto: Lex van Lieshout/ANP/AFP

Um homem de 25 anos, que vive na Grande São Paulo, pode ser condenado a até 15 anos de prisão pelos crimes de roubo e sequestro, mas, segundo a defesa, três reconhecimentos apresentados pela acusação foram feitos irregularmente e não houve uma investigação sobre o caso.

  • O crime ocorreu em 18 de julho de 2016. Um homem foi abordado por quatro indivíduos, que roubaram seu veículo e o mantiveram no automóvel, obrigando-o a realizar saques e transferências em Itapecerica da Serra, na Grande São Paulo.
  • Em 19 de julho, policiais faziam uma ronda próximo ao local em que ocorreu o crime e avistaram o veículo roubado em um lava-rápido.
  • Segundo a defesa, Yuri Ferreira da Silva trabalhava no estabelecimento, e o carro tinha sido deixado lá para ser lavado. Dois agentes notaram que a placa do veículo estava alterada e abordaram Yuri, que o lavava.
  • Yuri foi o único indiciado pelo caso, apesar de a vítima ter relatado que seriam quatro participantes.
  • Também é citado no boletim de ocorrência que uma arma de fogo foi usada no crime. Ela não foi localizada.
  • As provas apresentadas na Justiça para a condenação de Yuri foram: o reconhecimento feito pela vítima e o carro encontrado no lava-rápido. Não foram ouvidas testemunhas.

O caso é acompanhado por advogadas que fazem parte do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD). Elas afirmam que o processo foi conduzido com falhas pelo Judiciário e pela polícia. O g1 pediu para conversar com o promotor que fez a denúncia sobre o caso, mas, até a publicação desta reportagem, não teve retorno.

O Tribunal de Justiça de São Paulo (SSP) informou que “o processo tramita em segredo de Justiça e, portanto, as informações dos autos ficam restritas às partes e seus advogados”.

Já a Secretaria da Segurança Pública de São Paulo (SSP) informou que “o caso citado pela reportagem foi investigado por meio de inquérito policial instaurado pelo 1º Distrito Policial de Itapecerica da Serra, sendo relatado ao Poder Judiciário em agosto de 2016 com o pedido de prisão preventiva do suspeito. Na ocasião, o homem passou por reconhecimento pessoal e foi identificado pela vítima. Demais questionamentos devem ser feitos à Justiça“.

A Promotoria informou ao g1 que aguarda a decisão judicial e prefere não comentar o caso no momento.

Os reconhecimentos

  • No primeiro, não teria havido a descrição do suspeito, e policiais teriam apontado Yuri à vítima como sendo um deles;
  • No segundo, Yuri teria sido colocado ao lado de outros dois homens sem qualquer semelhança com ele para ser reconhecido;
  • No terceiro, o acusado teria sido posto para ser reconhecido ao lado de dois policiais brancos. Ele é pardo.

O que diz a lei

Conforme previsto pelo artigo 226 do Código de Processo Penal, quando houver necessidade de fazer o reconhecimento de pessoa, a vítima será convidada a descrever o suspeito.

Em seguida, ele será colocado ao lado de pessoas semelhantes, sendo a vítima convidada a apontá-lo. “A pessoa cujo reconhecimento se pretender, será colocada, se possível, ao lado de outras que com ela tiverem qualquer semelhança, convidando-se quem tiver de fazer o reconhecimento a apontá-la”.

Segundo a defesa, nenhuma dessas normas foi respeitada durante os três reconhecimentos, apesar de haver decisões judiciais para o seu cumprimento.

Em 2020, o ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Rogério Schietti Cruz deu uma nova interpretação para o artigo 266 do Código Penal, considerando que o reconhecimento realizado na fase inicial da investigação, presencialmente ou por fotografia, somente está apto para a identificação do réu e determinação da autoria do delito quando acompanhado de outras provas colhidas na fase judicial.

A decisão foi dada na absolvição de um homem condenado com base apenas em reconhecimento fotográfico.

O que aconteceu

Conforme o boletim de ocorrência, no dia em que o veículo foi encontrado, os agentes entraram em contato com a vítima, e ela foi até o lava-rápido. Lá, policiais teriam apontado Yuri como sendo o suspeito, e a vítima teria o reconhecido como sendo um dos participantes do roubo.

As únicas provas usadas para acusá-lo são os reconhecimentos e a palavra dos policiais, que o ligam ao crime.

Investigadores e a Justiça entendem que policiais, por serem funcionários públicos, possuem “fé pública” e não teriam motivos para prejudicar pessoas que não conhecem. Assim, suas versões seriam livre de julgamentos prévios e ganhariam mais peso.

Todos, Yuri, a vítima e os policiais, foram encaminhados para a delegacia na sequência. Ao chegar ao local, houve um segundo reconhecimento. A defesa do jovem argumenta que ele foi colocado ao lado de outros dois homens sem qualquer semelhança com ele para ser reconhecido.

“O nosso cliente trabalhava em um lava-rápido desses de bairro. O que aconteceu foi que, no dia seguinte do roubo, deixaram o carro para lavar no local, estacionado na guia e sem chave. A polícia estava fazendo uma ronda, passou na frente da rua e viu o Yuri lavando o carro. Imediatamente, sabendo que tinha ocorrido um sequestro-relâmpago na madrugada, chamaram a vítima”, afirma a advogada Maira Beauchamp Salomi Furtado de Oliveira.

“A vítima foi até o local e na hora os policiais apontaram para o Yuri, já o indicando como o sequestrador, um dos roubadores, nisso todo mundo foi para a delegacia”, completou.

Um inquérito policial foi aberto em 20 de julho. Yuri passou 12 horas na delegacia e foi liberado. A defesa alega que ele foi ouvido no dia da prisão, mas permaneceu em silêncio porque não foi informado que estava prestando depoimento. Mesmo sendo solto, o delegado do caso finalizou o inquérito e pediu a prisão do suspeito.

O MP-SP ofereceu a denúncia e iniciou o processo penal. No documento, de acordo com informações obtidas pelo g1, o promotor informou que, em 20 de julho de 2016, policiais militares realizavam patrulhamento de rotina em uma rua em Itapecerica da Serra, quando viram Yuri lavando um veículo com placas de Ribeirão Preto.

Os agentes desconfiaram da situação e abordaram o jovem. Após a vítima ser acionada pelos agentes, ela reconheceu Yuri como um dos autores do roubo.

“Essa denúncia teve mais um processo conjunto, isso porque eram quatro sequestradores, eles não fizeram nenhuma investigação para saber quem mais estava no local. Foi só com base no reconhecimento ‘viciado’ da vítima”, ressalta a defesa.

Do lava-rápido à prisão

Yuri teve a prisão preventiva decretada em agosto de 2016. Ele não se entregou e foi chamado para depor em abril de 2017, na mesma data que a vítima foi ao fórum de Itapecerica da Serra.

O jovem tentou conversar com a vítima e, como já tinha um mandado de prisão expedido, ele foi preso, algemado e posto para ser reconhecido novamente, perante a Justiça, ao lado de dois policiais brancos.

Yuri foi preso em 11 de abril de 2017 e permaneceu detido até 29 de junho de 2018, quando a defesa conseguiu um habeas corpus para responder ao processo em liberdade.

  • Yuri já foi condenado pela Justiça de São Paulo em primeira instância a 24 anos de reclusão. A pena incluía o crime de roubo, sequestro e a adulteração da placa do veículo. No entanto, a defesa recorreu e conseguiu absolver o jovem da adulteração da placa do carro. A pena foi reduzida para 15 anos.
  • A absolvição foi possível porque não foi feita perícia na placa.
  • O MP-SP entrou com um recurso para reverter a absolvição.
  • A defesa, por sua vez, entrou com um recurso especial no Superior Tribunal de Justiça (STJ), que está em tramitação para reverter a condenação.

Segundo a defesa:

  • Não foi feita investigação para descobrir o nome das outras pessoas que participaram do crime.
  • Fora os dois policiais militares que participaram da ocorrência, nenhuma outra testemunha foi ouvida.
  • A defesa também pediu que houvesse busca por imagens de câmeras de segurança dos locais no qual o veículo passou no dia do sequestro-relâmpago, o que não foi feito.

O processo corre desde 2016. Nesse período, a vítima mudou o depoimento diversas vezes sobre as características do suspeito do sequestro, segundo a defesa do acusado.

Primeiro, ela informou que o crime foi cometido por três pessoas, depois mudou para quatro. Alegou ainda nos primeiros depoimentos que Yuri estaria com um capuz e moletom azul. Depois mudou, dizendo que o homem usava um moletom vermelho. Em outros depoimentos, disse que o suspeito não tinha entrado no carro com ele, depois mudou a versão. Chegou a dizer que o suspeito fez a escolta do carro durante o roubo, mas mudou novamente.

“A vítima teve a memória contaminada. Com o passar dos anos, ela se lembrava mais de todos os reconhecimentos que tinha feito do que do crime. Ela já tinha visto o Yuri diversas vezes. Para a vítima, ele já era o criminoso”, afirma Maira Beauchamp.

Em entrevista ao g1, Yuri afirmou que a Justiça é falha e teme ser preso novamente. “Apresentamos provas e nada foi aceito. Isso acabou com a minha vida, eu estava estudando, estava trabalhando, perdi um tempo da minha vida que nunca vai voltar. Nunca tinha entrado em uma delegacia na vida. No dia, eu vi só a viatura passando, depois voltaram e já me enquadraram, dizendo que o carro era roubado.”

‘Número alarmantes de pessoas condenadas’

Para Marina Dias, diretora-executiva do IDDD, é impossível estimar o número de pessoas que estão sendo condenadas no Brasil apenas a partir de um reconhecimento feito de maneira irregular.

“Existe um número alarmante de pessoas condenadas com base apenas em reconhecimento policial e isso é muito grave porque o reconhecimento é uma prova frágil. No Brasil, o que tem de legislação a respeito do reconhecimento já é obsoleto em relação a todo o avanço da psicologia do testemunho, da neurociência etc. E, mesmo sendo obsoleto, a lei de reconhecimento não é obedecida, então por si só não pode ser suficiente para acusar alguém”, afirma.

Fonte: G1

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