Como professoras do ensino infantil remaram contra a maré para manter contato com as crianças na quarentena
Série especial do SP1 explora os desafios impostos pela pandemia a creches e pré-escolas. No último capítulo, conheça projetos que conseguiram garantir o acesso dos pequenos à educação e foram premiados por isso.
Professoras da Grande SP são premiadas por iniciativas na pandemia
Quando as aulas presenciais foram suspensas em março de 2020 em todo o Brasil por causa da pandemia do novo coronavírus, as professoras de creches e pré-escolas passaram a depender completamente das famílias para ter qualquer acesso remoto aos alunos, ainda não alfabetizados e incapazes de participar sozinhos de aulas por celular ou computador.
Essa dificuldade extra, e a urgência maior de evitar prejuízos para os estudantes do fundamental e ensino médio, reduziram as expectativas para a educação infantil ao longo de 2020.
Muitas professoras, porém, tentaram encontrar algum jeito de manter contato e garantir o acesso à aprendizagem dos pequenos.
Na creche da professora Joselene Cabral Lacerda, em Suzano, na Grande São Paulo, uma doação de livros infantis foi o trampolim para um projeto de contação de histórias individualizada que conseguiu retomar o vínculo de todas as 20 crianças de dois anos matriculadas.
Na pré-escola da professora Elisabete Barbosa Oliveira, em São Bernardo do Campo, no Grande ABC, a metodologia da documentação pedagógica das atividades escolares foi adaptada às vivências realizadas e registradas pelos próprios pais, como forma de criar uma rede de comunicação das famílias com as escolas e com as outras famílias, para estimular uma maior participação em atividades de aprendizagem previstas para esta etapa de ensino.
Os projetos, realizados na rede pública das duas prefeituras, ficaram entre os 100 selecionados para o Prêmio Educação Infantil: Boas Práticas de Professores durante a Pandemia, entregue em abril de 2021 pela Fundação Maria Cecília Souto Vidigal. Cada iniciativa recebeu R$ 1.000 como reconhecimento pelo esforço de remarem contra a maré.
Em depoimentos ao SP1, Joselene e Elisabete explicaram como tiraram a ideia do papel. Leia abaixo, no terceiro e último capítulo da série especial sobre o impacto da pandemia no ensino infantil, e nos desafios da retomada.
Cantinho da leitura ‘em domicílio’
- Nome: Joselene Cabral Lacerda
- Cidade: Suzano
- Escola: Escola Municipal Luiza Rodrigues de Oliveira
“O nome do projeto é Leitura na Calçada porque eles não podiam ir à escola, e eu não podia entrar na casa deles. As crianças maiores tinham as redes sociais, tinham as plataformas digitais, já têm acesso à internet, e com os pequenininhos, a única forma que eles tinham de ter um contato com a gente era através das famílias.
Inicialmente criamos um grupo de WhatsApp, eu fazia sugestão de vivência com as famílias.
Com o passar do tempo, a gente percebeu que as famílias foram ficando desmotivadas, porque começaram a perceber que o retorno não era rápido. Então os pais foram desanimando.
Eu fiquei bem incomodada com a distância das crianças. Fiquei bastante preocupada [sobre] como elas estavam, o que será que estava acontecendo com elas em casa, será que elas estavam bem assistidas? Eu tinha 20 crianças e apenas umas oito eram participativas.
Depois comecei a buscar formas para alcançar essas crianças. Nós recebemos alguns livros doados por alguma instituição para entregar para as crianças, já que elas estavam em casa. Para que elas tivessem também contato com a leitura.
A professora Joselene Cabral Lacerda trabalha na Escola Municipal Luiza Rodrigues de Oliveira, em Suzano (SP) — Foto: Rodrigo Pires e Juan Silva/TV Globo
Como eu gosto muito de livros e sempre trabalhei bastante com leitura, amo contação de histórias, eu pensei em uma forma diferente de entregar os livros para as crianças. Porém, que eles entendessem que aquilo era algo muito precioso, e as famílias também.
Então eu peguei ali uma sacola, coloquei dentro um tapetinho, alguns livros, peguei os livros que chegaram e falei: ‘Eu vou até a casa dessas crianças entregar esses livros de uma forma diferente’. Um dos objetivos era saber como que essa criança estava em casa, quem estava cuidando dessa criança, se essa criança estava ali tendo os seus direitos educacionais assegurados.
Preocupada com a baixa participação das crianças nas atividades remotas durante a quarentena, a professora de educação infantil Joselene Cabral Lacerda, de Suzano (SP), decidiu levar o cantinho de leitura pra calçada das casas de todas as famílias — Foto: Arquivo pessoal/Joselene Cabral Lacerda
Combinei com as famílias, disse para elas que estaria fazendo essa visita, agendei os dias. E fui. Chegando na casa das crianças, eu já arrumava a calçada: estendia o tapetinho, ajeitava os livros, e aí batia ali na casa.
Quando a criança abria a porta e via aqueles livros, e via a professora, elas ficavam muito felizes de ver a gente, era muito bom aquele sorriso das crianças.
E ali a gente sentava. Eu contava uma história para eles, fazia uma leitura. Era uma forma de a gente ensinar para as famílias que o livro pode ser interessante ou não, depende da forma com que a gente vai apresentar esse material para a criança.
Então eu apresentava de uma forma bem lúdica, bem gostosa, com musiquinhas, e depois entregava o presente pra eles. Eles recebiam o livro com tanto amor, abraçavam. E aí já queriam abrir, já queriam olhar o pacotinho que tinha dentro, era como se fosse um presente mesmo.
As famílias mandavam vídeos, enviavam relatos de como foi o momento depois, da criança com o livro. E recebíamos o vídeo das crianças realizando a leitura, das crianças felizes.
De início a gente ficou com muito medo [da Covid-19], porque era algo inesperado, desconhecido. Mas depois de conhecer os protocolos de segurança, de estudar bastante e saber quais eram as formas de se proteger, eu senti um pouquinho mais de segurança.
E também fiquei muito preocupada com essas crianças. Queria saber o que estava acontecendo com elas, principalmente com as que não estavam participando, e queria assegurar para elas esse direito que elas tinham.
Então de início eu fui sozinha, porque ficou todo mundo com muito medo. Depois que fiz a primeira visita, a segunda visita, a partir daí as auxiliares começaram a me acompanhar também, porque elas viram que a gente tinha como chegar a essa criança também de uma forma segura. Nós colocávamos a máscara, usávamos luva, levávamos o álcool gel na bolsa.
Realmente nós conseguimos visitar todas as crianças, conseguimos ir à casa de todos. Alguns foram um desafio, a gente conseguir encontrar a criança, a família.
Cheguei numa casa que tinha uma vovó com sete crianças, e essa minha criança era uma criança especial. Olha o desafio dessa vovó. E aí a vovó chorou, abriu o coração, então nós íamos lá não só para ter um contato com a criança, mas também para ouvir essa família.
Ali a gente começou a conseguir entender por que essa família não estava participando, porque a gente não estava conseguindo ter esse contato, esse vínculo com a criança. Porque as famílias também estavam passando por uma série de dificuldades, porque agora elas não tinham mais a escola. Elas tinham que deixar a criança com alguém.
Através dessas visitas a gente também conseguiu incentivar, mostrar para essa família que a educação infantil também é importante, não só o nível fundamental, porque ela é uma base para os demais ciclos.
A fase da educação infantil é a fase mais importante para a vida da criança. É a fase em que a criança está aberta para as curiosidades, para desenvolver as suas habilidades. Essa idade é crucial na vida da criança. É nessa idade que ela vai amar a escola ou ela não vai gostar da escola.
Nós tínhamos muito mais crianças não participando. Depois que visitamos todas essas famílias, todas as nossas crianças começaram a participar de alguma forma. [Os pais] viram a importância, entenderam que a escola não os havia abandonado.
E nós chegamos no final do ano, conseguimos fazer o amigo secreto com as crianças. Fizemos a troca de nomes. Passamos recolhendo os presentes, fizemos a entrega de presentes e até dezembro nós tínhamos 100% de participação.
Neste ano, nós já fomos até a criança na pandemia, agora as famílias estão vindo visitar a escola e passar um dia com as crianças. Estão vendo que a criança não fica aqui dentro só brincando, só recebendo cuidados, a criança também está aprendendo. Isso fez com que as famílias ficassem bem mais próximas da gente também.”
No fim de 2020, Joselene conseguiu garantir participação de 100% da turma no ‘amigo secreto remoto’: ela realizou o sorteio e buscou e entregou cada presente de porta em porta — Foto: Arquivo pessoal/Joselene Cabral Lacerda
Documentação pedagógica e horas extras
- Nome: Elisabete Barbosa Oliveira
- Cidade: São Bernardo do Campo
- Escola: Emeb Francisco Beltran Batistini Paquito
“[No começo,] a Secretaria da Educação começou a oferecer algumas orientações para a gente começar a ter mais atenção com a limpeza, com a higiene das crianças, ensinar as crianças a tossir usando o cotovelo e o braço. Logo depois as aulas foram suspensas.
Como nós estamos numa comunidade carente, a gente procurou uma ferramenta que fosse mais acessível para todo mundo e numa pesquisa a gente descobriu que era o WhatsApp. Foi a única coisa que a gente usou porque a maioria dos pais aqui tinha acesso.
Na educação infantil, os eixos de trabalho são a interação e a brincadeira, e o planejamento das experiências, mesmo a distância, tinha que respeitar os direitos de aprendizagem das crianças. Então a gente começou a pensar em experiências que as crianças pudessem fazer dentro de casa.
A professora Elisabete Barbosa Oliveira dá aulas para crianças em idade pré-escolar na Escola Municipal Francisco Beltran Batistini Paquito, em São Bernardo do Campo — Foto: TV Globo e G1
No começo a adesão foi baixa, porque a gente sempre pedia na proposta que os pais enviassem alguma coisa. ‘Manda uma foto da criança, como ela está em casa, manda uma foto de um bichinho de estimação dela.’ A gente queria se aproximar do contexto que as crianças estavam vivendo em casa.
Só que isso foi trazendo uma certa complicação porque os pais não estavam tendo tempo para fazer isso.
Então a gente foi atrás de fazer um questionário online para saber os melhores momentos da família em casa. A gente montou grupos de crianças que poderiam participar mais de manhã, mais à tarde, mais à noite. E aí que foi aumentando o engajamento das famílias.
Das propostas que a gente enviava retornavam 12, 13 [pais]. Os encontros síncronos eram menores, às vezes três, quatro crianças. A gente fazia toda semana para não perder o vínculo com as crianças. Então mais ou menos o número no início foi esse.
Por exemplo, uma brincadeira que a gente fez com eles foi fazer bolinha de sabão em casa com o material que eles tivessem disponível. Aí o pai de uma criança fez um resgate da infância dele. Ele não tinha um canudo para fazer a bolinha de sabão, ele usava folha de mamona enroladinha para fazer.
Aí ele fez mandou essa foto, eu montei um mural, que é a documentação pedagógica. Todas as crianças da turma tiveram acesso a isso.
Durante a quarentena. a professora Elisabete Barbosa Oliveira propunha vivências para os pais realizarem com as crianças que contemplassem o currículo do ensino infantil. Os pais então registraram as atividades, e a professora documentava o resultado e compartilhava com a turma, para incentivar a participação de todos — Foto: Imagem pessoal/Elisabete Barbosa Oliveira
Funcionou bem exatamente por causa da documentação pedagógica. Esse pai que mandou a foto dele fazendo a bolinha de sabão com o canudo de mamona, eu fiz a documentação pedagógica, e os pais começaram a perceber o quanto isso trazia aprendizado. E eles começaram a participar mais porque eles queriam que tivesse também dos filhos deles.
Outro exemplo é a ‘transformação do mundo físico’: a gente mandou kits pra casa. Esses kits tinham uma folhinha de suculenta e as crianças deveriam acompanhar essa folhinha se transformar numa nova planta partindo de uma única folha.
Assim as crianças foram conseguindo levantar hipóteses, trazer assim o encantamento.
Eu trabalho pela manhã e à tarde. Eu tinha três grupos de manhã, três grupos à tarde, três grupos à noite. A gente fez de tudo porque a gente sabia da dificuldade de todas as famílias nesse momento. Eu deixava o grupo aberto inclusive no final de semana.
Eu tinha muitas famílias que durante a semana não conseguiam participar, e aí me pediam: ‘Professora, posso mandar no sábado, no domingo, pode deixar o grupo aberto o tempo todo?’
Tenho um aluno que tem paralisia cerebral, então a gente montou um kit contando com a ajuda da professora do AEE, que é o Atendimento Educacional Especializado. Um kit de jogos que ele pudesse conseguir identificar cores, identificar o nome dele, então foi uma coisa individualizada.
Eu preciso falar da minha coordenadora, da Marta, que faleceu em 19 de setembro, e do quanto ela foi importante para me fazer crescer. Foi muito por incentivo dela. A documentação pedagógica aqui nessa escola é muito importante, é levada a um nível de excelência mesmo.
Segundo a professora Elisabete, o trabalho de documentação pedagógica durante a quarentena e a inscrição do projeto no prêmio da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal só foi para a frente por causa do incentivo da coordenadora da escola, Marta, que morreu recentemente — Foto: Juliana Di Lello/TV Globo
A educação infantil é a base da educação básica. Parece redundante, mas não é. A gente sabe que o cérebro na infância está passando pelo momento de maior desenvolvimento.
A educação infantil de hoje considera a criança como protagonista da sua aprendizagem. A criança é produtora de cultura também. Antigamente a criança era vista como vazia, e a gente preenchia. Hoje em dia não. A gente leva em conta o que ela traz de casa, o contexto da realidade em que ela vive.
A educação infantil é interação e brincadeira e não ter isso presencialmente foi bem complicado.
Eu considero que as experiências que a gente conseguiu oferecer para as crianças reduziram em muito os prejuízos, mas a gente se depara com crianças menos autônomas, com movimentos menos desenvolvidos, crianças que ainda têm dificuldade de lidar com conflitos.
As crianças da turma de Elisabete durante a pandemia hoje já estão no ensino fundamental, e a maioria estuda em uma escola vizinha, e ainda visitam e reencontram com a professora que as ajudou a manter o vínculo escolar durante a quarentena — Foto: Juliana Di Lello/TV Globo
As crianças acabam sendo um pouco ainda egocêntricas, essa questão de fazer parte de um grupo é difícil para elas porque elas passaram a pandemia convivendo com as mesmas pessoas todo dia e muitas das crianças são filhos únicos, então não tinha nem criança com quem elas brincassem durante a pandemia.
O que é bom é que elas ainda estão na infância e ainda há tempo de estimular o máximo possível o potencial.”
Fonte: G1