Quantidade de famílias em situação de miséria na cidade de SP cresce mais de 30% em janeiro de 2022, na comparação com 2021
Em janeiro de 2021, 473.814 famílias estavam nesta situação; neste ano, são 619.869 famílias, aumento de 30,82%%. Para especialista, números do CadÚnico não mostram dados reais de extrema pobreza nos municípios, já que muitas pessoas estão fora do cadastro.
Pessoas em situação de rua amanhecem em frente à Catedral da Sé, no Centro de SP, em semana que registrou as temperaturas mais baixas do ano — Foto: Deslange Paiva/ g1
Do Centro aos extremos da capital paulista, o cenário se repete: aumentou a quantidade de pessoas que pedem comida, roupa, trabalho. Muitos também são os paulistanos que perderam suas casas após a pandemia de Covid-19 e, sem alternativa, passaram a morar nas ruas.
CORREÇÃO: Ao publicar essa reportagem, o g1 errou ao informar que o número de pessoas em situação de miséria na cidade de São Paulo tinha aumentado 50% entre 2021 e 2022. A quantidade de famílias nesta situação cresceu 30,82% no período. A reportagem foi alterada às 6h50.
O que vemos no dia a dia pode ser comprovado por números: mais de 619 mil famílias estão vivendo em situação de extrema pobreza na cidade de São Paulo, segundo dados da Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social obtidos com exclusividade pelo g1.
O levantamento foi realizado a partir de dados coletados do Cadastro Único (CadÚnico) do município. Em janeiro de 2021, 473.814 famílias estavam nesta situação e, neste ano, são 619.869, aumento de 30,82%.
As subprefeituras que possuem mais famílias na extrema pobreza ficam na Zona Sul da cidade:
- M’Boi Mirim: 41.308;
- Capela do Socorro: 39.230;
- Cidade Ademar: 38.108.
Já os que possuem o menor número de famílias em extrema pobreza são:
- Lapa, na Zona Oeste: 4.996;
- Vila Mariana, na Zona Sul: 2.964;
- Pinheiros, na Zona Oeste: 2.024.
— Foto: Arte/g1
Definição de extrema pobreza
O critério do governo brasileiro para definição de extrema pobreza difere do utilizado pelo Banco Mundial. Para a instituição, considera-se nesta faixa quem tem renda diária per capita de US$ 1,90, ou cerca de R$ 274,50 mensais.
Já o CadÚnico classifica como extrema pobreza aquelas famílias com renda per capita mensal de até R$ 105. O valor é estabelecido pelo governo federal, por meio de um decreto do presidente da República. A última atualização das faixas de renda foi realizada em março.
Quem se enquadrar no conceito definido pelo governo passa, então, a ter direito a receber benefícios sociais, como o Auxílio Brasil, que paga a partir de R$ 400 para famílias em extrema pobreza.
Antes do início da pandemia, em janeiro de 2019, eram 412.337 famílias nesta situação na capital paulista. No mês de janeiro seguinte, em 2020, subiu para 450.351, um aumento de 9,21%. Em 2019, eram consideradas famílias em extrema pobreza aquelas com renda per capita mensal de até R$ 85. Em 2020 e 2021, a renda per capita que atestou tal situação era de até R$ 89.
Nos três anos, os bairros de M´Boi Mirim, Capela do Socorro e Cidade Ademar, na Zona Sul, se mantiveram entre os que registraram os maiores números de famílias nesta situação, seguidos por São Mateus, na Zona Leste.
Para Marcelo Neri, diretor da FGV Social, os números do CadÚnico não mostram os reais dados de extrema pobreza nos municípios, que pode ser ainda maior.
“Tivemos o processo de migração do Bolsa Família para o Auxílio Brasil, mas antes disso, vigorava o auxílio emergencial. Nessa passagem, teve o aumento do valor do benefício em relação ao Bolsa Família, mas diminuiu o número de beneficiários em relação ao auxílio emergencial, o que gera flutuações. O cadastro é um medidor de quem está sendo enxergado pela política, quem está sendo servido ou não”, afirma.
“Existe a questão de visualização, quantas pessoas realmente estão sendo vistas nesses números. Tivemos o aumento da população de rua, muitas dessas pessoas não estão incluídas no Cadastro Único, temos pouco investimento em assistência social para fazer uma busca de todas as pessoas que estão nessa situação”, completa Neri.
Isso porque a inscrição no Cadastro Único é realizada somente de forma presencial. O CadÚnico é um registro que permite ao governo saber quem são e como vivem as famílias de baixa renda no Brasil. Ele foi criado pelo governo federal, mas é operacionalizado e atualizado pelas prefeituras de forma gratuita. Ao se inscrever ou atualizar seus dados, a pessoa pode tentar participar de vários programas sociais.
Podem se inscrever famílias com renda mensal por pessoa de até meio salário mínimo ou que possuem renda acima dessas, mas que estejam vinculadas a algum programa ou benefício que utilize o cadastro em suas concessões.
Em entrevista ao g1, o Luiz Fernando Francisquini, coordenador de Gestão de Benefícios da Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social de São Paulo (SMADS), informou que a elevação dos dados se deu por conta da mudança da regra de medição do CadÚnico, que começou a considerar famílias em situação de extrema pobreza aquelas que relataram receber R$ 105 per capita mensalmente.
“Mas o fato é que tivemos um aumento sim da extrema pobreza nos últimos anos, um fenômeno agravado não só por questões econômicas, mas também por conta da pandemia”, disse. (leia mais abaixo)
Pessoas dormindo na rua no Centro de SP nesta quinta-feira (19). — Foto: Deslange Paiva/ g1
O g1 visitou a comunidade de Pinheiral, no Jardim Ângela, que faz parte da Subprefeitura de M’Boi Mirim, na Zona Sul, uma das ocupações que recebe doações da organização sem fins lucrativos Sociedade Santos Mártires, que atua na região.
Comunidade de Pinheral, na Zona Sul de SP — Foto: Deslange Paiva/ g1
A reportagem conversou com moradores da comunidade, que relataram ter deixado de consumir itens básicos, principalmente a carne, por conta do aumento no preço de produtos.
“Pessoas dos mais diversos perfis estão precisando do básico, pessoas que perderam o emprego e todas as suas fontes de renda estão nos procurando para pedir ajuda não só para comer, mas em busca do básico para viver”, afirma Regina Paixão, líder comunitária.
“O problema não é só a fome. Com a alta no preço das coisas, dificultou o acesso das pessoas no básico. Como você vai ao mercado se não tem dinheiro, hoje o que dá para fazer com R$ 400? Além de alimentação, pessoas precisam de muita coisa, sabonete, papel higiênico, itens de higiene básica, o mínimo para garantir dignidade”, completou.
Na comunidade com cerca de 100 famílias, segundo assistentes sociais que acompanham o local, quase todos dependem de doações e do Auxílio Brasil. Eles recebem diariamente marmitas do projeto Cozinha Solidária, do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST).
Segundo Regina Paixão, muitas pessoas começaram a pedir por ajuda até para comprar a passagem de volta para o estado de origem por conta da crise, para fugir da fome. “É um movimento de volta que estamos observando, as pessoas que vieram para o estado de São Paulo justamente em busca de novas oportunidades estão sem alternativas.”
No ano de 2022, o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), que mede a inflação oficial do país, acumula alta de 4,29%. De março de 2020, no início da pandemia, até abril deste ano, a inflação acumulada já está em 19,42%.
‘O jeito é pedir sobras’
‘O jeito é viver de sobras, eu peço as sobras nos açougues, gordura também. Pego as sobras e vou tirando o que dá para aproveitar, vou me virando’, afirma Suzana Nascimento Barbosa, de 29 anos.
Suzana faz reciclagem de produtos para complementar a renda. — Foto: Deslange Paiva/ g1
Ela mora com a filha de 10 anos e recebe cerca de R$ 500 por mês para se manter, R$ 400 do Auxílio Brasil e cerca de R$ 50 quando consegue fazer faxina. “Acabo fazendo reciclagem para complementar o valor, tem vezes que até rende uma coisinha.”
“Se eu falar que dá para passar o mês, vou estar mentindo. Sempre falta alguma coisa. Café e carne eu deixei de comprar, não tem como. Frutas e legumes sempre dá para conseguir algo em fim de feira, mas tem mais coisas que a gente precisa, que são caras: papel higiênico, por exemplo, é uma coisa que é difícil conseguir doado”, afirma.
Além da fome
Assistentes sociais na comunidade de Pinheral. — Foto: Deslange Paiva/ g1 SP
Segundo Regina Paixão, conforme a capital foi diminuindo as restrições por conta da pandemia da Covid-19, também foram caindo as ações sociais na região do M´Boi Mirim. “Muitas pessoas perderam o emprego na pandemia e ainda não conseguiram recuperar, essa região ainda é cidade-dormitório, ou seja, os moradores dormem por aqui, mas trabalham e procuram emprego em outras regiões, então existe uma série de fatores, uma falta de investimentos por parte da prefeitura que dificulta ainda mais o desenvolvimento.”
Ela ressalta que a assistência social oferecida do poder público não chega a quem precisa e mora nas extremidades da cidade. “É complicado, a gente não tem Metrô aqui ainda, uma luta de anos, uma coisa que com certeza diminuiria os gastos de uma pessoa que precisa se locomover para procurar emprego. Estamos em outra realidade agora, nasceu um outro nicho de pobreza no território. O poder público enxerga o Jardim Ângela só pelo centro do bairro, mas existem bolsões nas extremidades onde a assistência social não chega, e nós não temos recursos para atingir todos.”
“O problema não é só a fome, não é só entregar uma cesta realmente básica com o mínimo que resolve, são diversos fatores que mantêm as pessoas na mesma “, completou.
Para Marcelo Neri, além do fato de que nem todas as pessoas que precisam estão sendo contempladas pelo Auxílio Brasil, o valor é mal distribuído. Ele explica que o auxílio, apesar de ter um valor maior que o antigo Bolsa Família, é “míope em relação à pobreza”.
“Ele entrega mais recursos, mas não diferencia os perfis de pobreza, quem precisa mais, não diferencia famílias maiores de famílias menores. R$ 400 para uma família de 6 pessoas, o mesmo serve para uma família de uma pessoa, não tem muito sentido. Fora as pessoas do Cadastro Único que não são contempladas”, afirma.
O g1 entrou em contato com o governo federal para obter um posicionamento a respeito das críticas ao Auxílio Brasil, mas recebeu, como resposta, apenas informações sobre os critérios de elegibilidade e dados sobre a operacionalização do programa.
O que diz a secretaria
Luiz Fernando Francisquini, coordenador de Gestão de Benefícios da SMADS, afirma que o CadÚnico não é a única referência para medir a extrema pobreza no país, mas é a “mais adequada”.
“A medição da extrema pobreza muda de um ano para o outro, de 2021 para 2022 nós tivemos uma mudança na regra de medição, tomando como referência o Cadastro Único. Ele não é a única dimensão de extrema pobreza, mas é a régua mais adequada que temos no Brasil todo para identificar e quantificar as pessoas. A mudança foi a faixa de renda, até outubro do ano passado era de R$ 89 per capita mensal, em janeiro foi para R$ 105, tivemos uma elevação da régua, que acaba incluindo mais famílias.”
Francisquini informou ainda que a secretaria começou a desenhar um estudo que possa estimar a quantidade total de famílias nessa situação, mesmo fora do cadastro.
“Precisamos de uma atualização mais complexa dos dados de extrema pobreza, antes tínhamos como referência o Censo do IBGE de 2010, mas são dados [que ficaram] antigos, defasados. Ainda não temos uma referência robusta para dizer que aumentou tanto em tais locais, até para medir o quanto está fora do CadÚnico e o quanto deveria estar dentro e ainda não conseguiu acessar.”
Ele afirmou ainda que houve um aumento expressivo na demanda de atendimento por conta do empobrecimento maior da população. Segundo o coordenador, atualmente o serviço social da capital possui uma equipe de 220 entrevistadores trabalhando no Cadastro Único, com um atendimento médio de 52 mil atendimentos por mês, mas ainda é necessário aumentar a equipe, o que está previsto para ocorrer no segundo semestre deste ano.
“Nós temos limitações orçamentárias, estruturais e de recursos, então temos que racionar para ser o mais eficiente possível. Temos uma rede grande de atendimento, mas ainda não é o ideal para atender todas as pessoas que precisam, como as que estão mais afastadas dos postos de atendimento, que não tem como se locomover até eles”, ressalta.
Sobre as pessoas que estão aptas a receber benefícios, mas, ainda assim, não recebem o Auxílio Brasil, Francisquini diz que a estimativa da prefeitura é a de que sejam 80 mil famílias.
Fonte: G1