São Paulo dos modernistas: como era o Centro na época da Semana de 22 e como está 100 anos depois
Conheça os lugares do Centro que os artistas da Semana de Arte Moderna frequentavam e veja como a região se transformou. Theatro Municipal, que foi palco do evento e provocou o primeiro congestionamento da cidade em sua inauguração, agora tem brunch e bar ‘hipster’.
O Theatro Municipal de São Paulo visto na noite de sua inauguração e no presente — Foto: Valério Vieira/Coleção de Arte da Cidade/SMC/PMSP; Fábio Tito/g1 https://59afc9c6acb041492be6f6573a332a1c.safeframe.googlesyndication.com/safeframe/1-0-38/html/container.html
Em uma segunda-feira de verão de 1922, o Theatro Municipal de São Paulo viu seu palco e salões serem ocupados por obras de artistas como Anita Malfatti e Di Cavalcanti, sob o som do maestro Heitor Villa-Lobos e da voz do poeta Manuel Bandeira.
No entorno, integrantes da elite paulistana chegavam às escadarias do teatro – o público, maior do que o esperado, se espantou ao ser apresentado a um novo modelo de arte que visava substituir os valores estéticos importados da Europa pela valorização da cultura nacional.
Depois da Semana de Arte Moderna, que completa 100 anos neste domingo (13), nada mais foi o mesmo na arte brasileira – e o Centro de São Paulo, epicentro desse movimento artístico, teve papel relevante em muitas dessas transformações.
Vistas do Vale do Anhangabaú no início do século XX e atualmente, a partir do Viaduto do Chá, logo ao lado do Theatro. Ao fundo, é possível ver o Viaduto Santa Ifigênia — Foto: Aurélio Becherini/Estadão Conteúdo/Arquivo; Fábio Tito/g1
O Theatro Municipal de São Paulo também viu seu entorno, o Centro da capital, sofrer drásticas mudanças entre 1922 e os tempos atuais. Se hoje roubos de celulares, trânsito intenso e aumento na população de rua são alguns dos problemas dos arredores do teatro, na década de 1920 a região vivia um boom econômico, que acompanhava o ainda recente processo de urbanização da cidade.
Os artistas que organizaram a Semana de 1922 participavam ativamente da cena cultural do Centro. A Praça Antônio Prado, onde hoje se ergue o Edifício Altino Arantes, também conhecido como Banespão, era ponto de encontro de intelectuais, que se cruzavam nos cafés e nas redações de jornais como o Estado de São Paulo e o Correio Paulistano.
Veja abaixo a história de diversos marcos da região central, como eles mudaram com o tempo e a relação deles com a Semana de Arte Moderna de 1922:
Os artistas e o centro
“Não tem como a gente falar de modernismo sem falar das transformações do Centro da cidade, porque esses artistas vieram justamente nessa transição que a cidade vivia no final do século 19 para o 20.”
É desta forma que a guia de turismo Tereza Cristina Batista descreve a região central da capital paulista na época em que os modernistas circulavam por lá. Às 10h30 dos sábados deste mês de fevereiro, ela organiza tours guiados pela região com a temática da Semana de 22. Os passeios, patrocinados pelo shopping Pátio Metrô São Bento, são gratuitos.
Próxima ao ponto de encontro do tour, a Praça Antônio Prado tinha diversos cafés que eram considerados pontos de encontro de intelectuais da década de 1920, dentre eles os próprios modernistas.
O Centro de SP na Semana de Arte Moderna de 1922 — Foto: Kayan Albertin/g1
Ali perto, na Rua Quinze de Novembro, estava o grande centro financeiro e cultural da cidade. “Era a rua com as melhores lojas também, um lugar de elite”, conta Tereza Batista.
Na Quinze de Novembro ficava a primeira unidade do Mappin no Brasil, inaugurada em 1913. Além de funcionar como loja de departamentos, o espaço também era uma espécie de centro cultural, e foi palco da primeira exposição individual de Anita Malfatti – uma das grandes personalidades femininas da Semana de 22 – em 1914. No ano anterior, Lasar Segall também tinha realizado sua estreia ali nas proximidades, na Rua São Bento.
Folheto da primeira exposição individual de Anita Malfatti — Foto: Reprodução/Enciclopédia Itaú Cultural
A segunda exibição artística de Anita ocorreu três anos mais tarde, no Palacete de Antônio de Toledo Lara, o Conde Lara, no número 332 da Rua Líbero Badaró. Inspirada nas técnicas do expressionismo alemão que aprendeu no período em que passou estudando em Berlim, na Alemanha, e Nova York, nos Estados Unidos, a jovem pintora impactou o público ainda tradicional da capital paulista e foi duramente criticada por Monteiro Lobato. Hoje, no térreo do palacete do Conde Lara, há uma lanchonete, e os andares superiores são ocupados por escritórios.
Por volta de 1917, Oswald de Andrade adquiriu uma garçonnière – apartamento de homens solteiros utilizados para encontros amorosos – também naLíbero Badaró, próximo à faculdade de Direito do Largo São Francisco, e transformou o espaço em um local para realização de discussões intelectuais, segundo a guia turística. https://59afc9c6acb041492be6f6573a332a1c.safeframe.googlesyndication.com/safeframe/1-0-38/html/container.html
Vista da rua José Bonifácio com a rua Quintino Bocaíuva — Foto: Aurélio Becherini/Estadão Conteúdo/Arquivo; Fábio Tito/g1
Desses encontros participavam nomes como Menotti Del Picchia, Guilherme de Almeida, Inácio Ferreira (Ferrignac) e Monteiro Lobato. Segundo Tereza Cristina, as reuniões fazem parte do “pré-movimento” modernista, uma vez que já havia trocas de ideias similares às da Semana de 22, mas os envolvidos ainda não se consideravam de tal forma.
Também no Centro da capital, na Rua Barão de Itapetininga, próximo à atual estação República da Linha 3-Vermelha do Metrô, ficava o escritório de advocacia do também autor Guilherme de Almeida, outro participante da Semana de Arte Moderna.
Na mesma rua, a Confeitaria Vienense servia um tradicional chá das cinco ao som de piano e violinos. De acordo com a guia turística, a doceria era um dos locais favoritos para reuniões do Grupo dos 5 – formado por Anita Malfatti, Tarsila do Amaral, Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Menotti Del Picchia. https://59afc9c6acb041492be6f6573a332a1c.safeframe.googlesyndication.com/safeframe/1-0-38/html/container.html
Próximo ao Theatro Municipal, palco do evento que completa 100 anos, já se encontrava o Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, onde Mário de Andrade dava aulas de piano para jovens moças da elite paulistana.
O local também abrigava eventos como concertos, sarais e encontros literários, nos quais havia muitas discussões que serviram de base para as proposições do modernismo. Atualmente, o espaço faz parte do complexo do Paço das Artes, que pertence à Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo.
Largo São Bento, na região central de São Paulo, em foto da década de 1920 e de 2022 — Foto: Arquivo/Estadão Conteudo; Fábio Tito/g1
Perfil da cidade
A São Paulo dos anos 1920 estava crescendo rapidamente. Se em 1900 a população da capital era de 239.820 pessoas, em 1920 o número chegou a 579.033 habitantes, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) organizados pela Prefeitura de São Paulo. https://59afc9c6acb041492be6f6573a332a1c.safeframe.googlesyndication.com/safeframe/1-0-38/html/container.html
Nesta época, boa parte da população da cidade era estrangeira, de acordo com o censo de 1920. Dos 579 mil habitantes da capital, 372 mil eram brasileiros natos, enquanto outros 205 mil eram estrangeiros, além de outros 1.412 moradores que não declararam a nacionalidade. A influência estrangeira, especialmente europeia, podia ser observada no Centro de São Paulo, onde lojas de “artigos finos para senhoras” vendiam produtos importados para uma clientela elitizada.
Diante do crescimento da população, chácaras ao redor do centro eram loteadas e se transformavam rapidamente em novos bairros. Entre 1915 e 1929, a mancha urbana se espalhou e alcançou regiões onde hoje estão bairros como Pinheiros, Mooca, Penha e Casa Verde.
No entanto, bairros como Butantã e Ipiranga ainda eram pouco povoados. A expansão ocorreu primeiro em direção às zonas Leste e Sul, em detrimento da Zona Oeste e Norte (veja no mapa abaixo).
Mapa da urbanização da cidade de São Paulo de 1914 a 1929 — Foto: Kayan Albertin/g1
Até a Semana de 1922, as transformações urbanas no Centro também ocorriam sob forte influência europeia. O período de 1910 até 1930 foi marcado por grandes obras no Centro da cidade, e as reformas não eram apenas técnicas, mas também ligadas à estética e ao embelezamento da região de acordo com os modelos adotados em cidades como Paris e Buenos Aires.
Em 1911, mesmo ano em que foi inaugurado o Theatro Municipal, o urbanista francês Joseph-Antoine Bouvard foi contratado para realizar um novo projeto para o Vale do Anhangabaú. O paisagista desenvolveu um grande projeto de arborização do vale, que se transformou em parque. A obra só foi possível porque antes, em 1904, um projeto de canalização de rios cobriu o leito do Rio Anhangabaú.
As obra sugeridas por Bouvard para entorno do vale só foram concluídas nos anos 1920, com a criação de uma praça no início do Viaduto do Chá, a Praça do Patriarca.
No outro extremo do viaduto, dois teatros pontuavam as esquinas da via: o Theatro Municipal, inaugurado em 1911, e o Theatro São José, aberto em 1909 no terreno onde hoje está o Shopping Light.
Antigo Theatro São José, atual Shopping Light — Foto: Reprodução/Origem Desconhecida/Cartão postal; Fábio Tito/g1
Entretanto, a coexistência dos teatros durou pouco, já que após a inauguração do Municipal, o Theatro São José passou por um período de decadência porque as principais montagens passaram a ocorrer no concorrente da esquina oposta. A casa de espetáculos foi desativada em 1919 e, em 1924, o edifício foi demolido para a construção da sede da Light São Paulo, posteriormente ocupada pela Eletropaulo e pelo Shopping Light.
O Theatro
Fachada do Theatro Municipal de São Paulo — Foto: Celso Tavares/G1
A inauguração do Theatro Municipal ocorreu em setembro de 1911, pouco mais de uma década antes da Semana de 22. Jornais da época destacaram a grande fila de carros que se formou no entorno do teatro em sua noite de abertura. Segundo o jornal Folha de S. Paulo, da frota de 300 carros daquele ano, cem foram à ópera Hamlet, apresentada na noite de estreia.
Inspirada na Ópera de Paris, a construção era muito aguardada pela elite paulistana. Também causou frenesi a inauguração de um prédio todo iluminado por energia elétrica, que ainda era uma novidade na época.
Teatro Municipal, à direita, e o o Theatro São José vistos de uma varanda do Viaduto do Chá, em foto da década de 1920 — Foto: Arquivo/Estadão Conteúdo; Fábio Tito/g1
A escolha do Municipal como palco para a Semana de 1922 chegou a ser interpretada como uma suposta “democratização” do programa do teatro, que era criticado por favorecer artistas estrangeiros.
No entanto, especialistas como a socióloga Maria Arminda do Nascimento Arruda, ex-diretora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP), refutam essa tese.
Abaporu, obra da artista modernista Tarsila do Amaral em frente ao Theatro Municipal de SP, durante comemorações do aniversário da cidade de São paulo — Foto: Fábio Tito/G1
Em entrevista ao Jornal da USP no centenário do Municipal, a professora defendeu que o evento foi feito pela elite para a elite. Para ela, a Semana de 22 não representou uma popularização do teatro, embora o movimento modernista propusesse, de fato, uma renovação cultural.
Se durante o evento o Municipal não chegou a ter um público democrática, ao longo dos seus mais de 110 anos o teatro diversificou o programa e recebeu artistas de diferentes estilos, como o rapper Emicida e as cantoras Elza Soares e Elba Ramalho.
O rapper Emicida durante show no Theatro Municipal de São Paulo, registrado no documentário AmarElo — Foto: Reprodução/Amarelo
Desde sua construção, o prédio foi alvo de três grandes reformas. A primeira, entre 1952 e 1955, promoveu a troca das cadeiras, além de outras peças do mobiliário, que foram substituídos por peças revestidas em veludo vermelho. Segundo a administração do Theatro, a reforma da década de 1950 também ampliou a Sala de Espetáculos retirando as frisas do fundo, bem como quase todos os camarotes, dos quais restaram os oito ainda existentes reservados a autoridades. Anos depois, em 1969, no lugar dos camarotes demolidos foi instalado o órgão de uma empresa italiana.
A segunda obra de peso ocorreu nos anos 1980 e promoveu a restauração de toda a fachada do prédio, desta vez com grande preocupação em manter as características originais da construção. Além disso, o palco foi modernizado com novos equipamento para cenografia e controle de iluminação.
Em outra grande reforma, entre 2008 e 2011, técnicos refizeram toda a estrutura de sonorização, acústica, mecânica cênica e tratamento acústico do fosso da orquestra. O palco, pinturas antigas e mais de 14 mil vitrais também foram restaurados na ocasião.
Mas as transformações mais recentes no prédio datam de 2018 e incluem a criação de um bar no subsolo do edifício e a adaptação do chamado Salão Dourado para um restaurante especializado em brunch.
Ambiente do Bar dos Arcos, no subsolo do Theatro Municipal de São Paulo — Foto: Divulgação/Bar dos Arcos
Inaugurado há pouco mais de três anos, o Bar dos Arcos ocupa um espaço sombrio que, antes, funcionava como uma passagem de ar para a climatização do teatro. Sob as arcadas que sustentam o teatro há mesas altas, salas privativas e até um bar secreto.
O espaço chegou a ter também uma piscina de bolinha escondida, mas, durante a pandemia de Covid-19, este ambiente foi reformado e passou a abrigar uma sala privada com luz vermelha.
Salão Dourado do Theatro Municipal de São Paulo — Foto: Reprodução/Bar dos Arcos
Fonte: G1