Conheça prédio de Niemeyer
Conheça prédio de Niemeyer ‘escondido’ em SP, que tem obra de Di Cavalcanti e terraço com vista 360° do Centro
O g1 visitou o Edifício Triângulo, na região central da capital, e conversou com Everaldo Batista, que mora na cobertura do prédio há 26 anos, é fã de carteirinha do maior arquiteto do Brasil e atua como guia turístico na própria residência.
Edifício Triângulo, no Centro de São Paulo — Foto: Gustavo Honório/g1
Um quarteirão triangular formado pelas ruas José Bonifácio, Direita e Quintino Bocaiúva é morada de um edifício de mesmo formato no Centro de São Paulo. Com as quinas arredondadas, a construção até se difere das outras ao seu redor — mesmo assim, passa despercebida no habitual corre-corre da região.
No número 24 José Bonifácio, uma parede deteriorada, com algumas pichações, reflete um pouco do que é aquele pedaço da capital, mas uma arte feita com milhares de quadradinhos azuis e brancos é contraste numa área predominantemente tomada por comércios.
Apesar das marcas aparentes de descuido, o painel, que retrata operários com suas ferramentas, é obra de Di Cavalcanti, um dos grandes nomes da arte brasileira. Além disso, é bem tombado pelo Conpresp (Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo).
E o prédio que abriga o mural formado por pastilhas de vidro é projeto do maior arquiteto brasileiro, Oscar Niemeyer. De nome sugestivo, o Edifício Triângulo é um dos cinco prédios assinados por ele na capital (e foi construído no mesmo contexto do famosíssimo Copan).
“Ele está muito escondido. Definitivamente, o Triângulo não é reconhecido como deveria, porque, mesmo sendo obra do Niemeyer, com painel do Di Cavalcanti, não tem sequer uma placa do inventário da memória paulistana, que é um programa da prefeitura”, apontou o urbanista Gabriel Rostey.
“Você anda por aqui a pé e vê um painel que está descaracterizado, sem placa ou indicação que revele a importância que esse prédio tem para São Paulo”, completou ele, que é criador do podcast Conversas Urbanas.
Para saber mais detalhes dessa obra, o g1 visitou o prédio acompanhado de Everaldo Batista dos Santos, de 54 anos, que é zelador e mora da cobertura do Triângulo há 26 anos, praticamente metade do tempo de sua vida.
Edifício Triângulo, no Centro de São Paulo — Foto: Gustavo Honório/g1
São 18 andares de muitos detalhes pensados por Niemeyer, a começar pela entrada do edifício. “É o único prédio que tem que descer para poder subir”, brinca o zelador Everaldo. Sem contar o painel de Di Cavalcanti (leia mais abaixo).
“A opção de entrar no prédio descendo uma escada foi para liberar mais espaço para lojas no térreo. Na época, foi interessante, mas hoje acaba sendo uma dificuldade para o uso atual do prédio, que não tem acessibilidade”, explica Rostey.
Ao lado dos elevadores, uma placa do Museu da Casa Brasileira mostra a assinatura do arquiteto, que teve ajuda do urbanista Carlos Lemos na empreitada de projetar prédios em solo paulistano.
Lemos foi chefe do escritório-satélite de Niemeyer na capital. Juntos, tocaram os projetos encomendados pelo Banco Nacional Imobiliário: os edifícios Triângulo, Copan, Califórnia, Montreal e Eiffel.
Everaldo, muito solícito e paciente, subiu até o último andar e desceu um por um para mostrar as particularidades dos halls e da escadaria do prédio, que é repleto de curiosidades:
- Há apenas um morador: o zelador Everaldo, que tem acesso exclusivo à cobertura e ao terraço com vista 360° do Centro (leia mais abaixo);
- O prédio é inteiro comercial, com escritórios de advocacia em quase todos os andares;
- Do 18º andar ao 16º, as escadas em estilo caracol seguem em sentido horário; a partir do 15º, roda em sentido anti-horário;
- No 14º andar, uma das salas proporciona a visão 180° do Centro de São Paulo, sendo possível observar, por exemplo, a Catedral da Sé, o Farol Santander e o Edifício Martinelli;
- No 18º andar, o cantor Junior gravou um clipe em que aparece nu;
- Os halls são diferentes uns dos outros, com exceção do 1º e 10º andares, que têm as mesmas medidas;
- Os pilares do edifício têm espessuras diferentes: nos primeiros andares, são muito grossos, já que dão estrutura ao prédio; nos últimos andares, são muito mais finos, já que não há mais tanto peso para sustentar;
- Do 8º ao 18º andar, o pé-direito mede 3 metros; do 7º ao subsolo, são 2,5 metros de altura;
- Do 18º ao 16º, há três salas por andar; a partir do 15º, são quatro;
- Nas escadas, não havia parede de concreto, o espaço era revestido por vidro e tinha vista para a Rua José Bonifácio, mas anos depois precisou ser readequado por razões de segurança;
- Até os 50 metros de altura, o prédio tem um formato; acima disso, os andares tiveram de ser recuados.
“Esse formato é chamado de ‘bolo de noiva’ — à medida que vai subindo, vai aumentando o recuo dos andares, ou seja, a parte de baixo é maior que a de cima. Isso era uma legislação da época para facilitar a entrada de sol e ventilação quando mais alto o prédio fosse”, afirmou Rostey.
Painel de Di Cavalcanti no Edifício Triângulo, no Centro de São Paulo — Foto: Fábio Tito/g1
“Quando eu cheguei para trabalhar no prédio, de cara, eu vi o quê? O painel do Di Cavalcanti. Pensei: ‘’erá que é dele mesmo?’’ Porque está naquele estado, com pastilhas de péssima qualidade, um remendo”, lamentou Everaldo.
Ele diz que, nos anos 90, durante uma época de frio na capital, um grupo de pessoas em situação de rua fez uma fogueira para se aquecer, mas o fogo acabou atingindo a obra.
“Ficou aquela fumaça, aquela coisa preta. Daria para ter um tratamento, fazer uma limpeza. Talvez a pessoa que foi fazer não pensou nisso, simplesmente tirou a pastilha original do Di Cavalcanti, que ele colocou com a mãozinha dele. Colocaram uma pastilha de péssima qualidade, que está até hoje lá”.
Quando se deu conta da importância daquele mosaico, Everaldo começou uma saga pela restauro do painel — algo que já dura 24 anos.
“Comecei a divulgar o prédio, falei com a arquiteta portuguesa Isabel Ruas, que já restaurou um painel do Di Cavalcanti. Ela falou que não desistiu do nosso projeto, que está lutando para ver se consegue patrocínio, porque tem um custo. Tive até reunião com o Júlio Moraes, que restaurou o Teatro Municipal, mas não foi para frente”.
O g1 perguntou à Prefeitura de São Paulo se não há interesse em promover o restauro do painel. Em nota, a Secretaria Municipal da Cultura disse que, como o Edifício Triângulo é um imóvel de propriedade particular, compete ao proprietário a conservação e a preservação do bem, inclusive dos elementos artísticos integrados.
Como o espaço é tombado, qualquer intervenção deverá ser analisada e aprovada pelo Departamento do Patrimônio Histórico e pelo Conpresp.
“Venho lutando por isso, mas a gente sabe, ainda mais no Brasil, quando se fala em dinheiro, é muito difícil. Ver esse painel restaurado seria a maior satisfação da minha vida”.
Gabriel Rostey defende que o painel seja recuperado o quanto antes, e que isso é plenamente possível, a exemplo do Teatro Cultura Artística — o local, que também tem um painel de Di Cavalcanti na fachada, sofreu um grande incêndio em 2008, mas a obra foi completamente restaurada.
“Com programas governamentais que incentivam o retrofit, fica a esperança para que tenha uma valorização do Centro”.
“O painel é feito de pastilhas de vidro, que são mais caras. Depois do incêndio, substituíram por pastilhas de cerâmica, mais baratas. Dá para ver claramente a diferença. A gente lamenta que o painel externo, mais para a população ver, fique deteriorado desse jeito”, diz Rostey.
O especialista também vê potencial no terraço com visão privilegiada da região: “Com essa tendência de abrir cada vez mais rooftops na cidade, essa cobertura aqui tem um potencial incrível. Quanto mais você conhece o prédio, maior é o potencial dele”.
Everaldo Batista dos Santos, zelador e morador do Edifício Triângulo, com um de seus cães no colo, o spitz alemão Kim — Foto: Fábio Tito/g1
Catedral da Sé, Palácio da Justiça, Pateo do Collegio, Terminal Parque Dom Pedro II, Farol Santander, Edifício Martinelli, Centro Cultural Banco do Brasil, Edifício Ouro para o Bem de São Paulo, Shopping Light, Prefeitura de São Paulo, Edifício Itália, Copan, Conjunto Nacional…
Everaldo precisa dar poucos passos no quintal de casa para conseguir ver todos esses pontos de São Paulo. Isso porque ele é uma das poucas pessoas no mundo que pode dizer que mora na cobertura de um prédio projetado por Oscar Niemeyer, com uma invejável vista 360º do Centro.
Ao entrar no apartamento, o g1 foi calorosamente recepcionado pelos fiéis companheiros do zelador. “Pode entrar. Esse é o Kim e essa é a Syang”, disse ele, mostrando os dois cachorrinhos, um spitz alemão e uma yorkshire.
“Não repara a bagunça. Em cinco passos, você já chega aqui”. O pequeno apartamento não dá pista do que vem pela frente: um grande terraço cheio de plantas e com vista livre para a maior capital do Brasil.
Ao longo dos anos, Everaldo deu sua cara ao espaço: “Esse é o fogão que eu fiz, tenho as panelas de ferro aqui, mas faz tempo que eu não faço comida. Mas é bom bonito, né?”, disse, com orgulho. “Tem gente que vê umas fotos e pergunta ‘Onde é a chácara que vocês estão?’. Mas é na minha casa mesmo”.
“Quando está limpinho, eu consigo ver os aviões pousando no Aeroporto de Guarulhos. Passam aqui por cima da Serra da Cantareira”.
Everaldo Batista dos Santos, na cobertura do Edifício Triângulo, com o Farol Santander ao fundo — Foto: Fábio Tito/g1
Fã de Niemeyer
Ir para o Triângulo em 1998 despertou uma paixão por arquitetura que Everaldo ainda não sabia que tinha, sobretudo por Niemeyer. “Eu já tinha ouvido falar somente porque ele tinha projetado Brasília, mas não sabia que era esse gênio”.
O fascínio é tanto que, sempre que tem oportunidade, dá um jeito de conhecer uma nova criação do arquiteto.
“Fui até o Rio de Janeiro, até Curitiba, para conhecer o Museu do Olho… O Ibirapuera conheço bem, o Memorial da América Latina”.
“Tinha muita vontade de conhecer Brasília. Peguei um final de semana e fui. Só de cima, já percebi que a cidade era um platô, uma coisa bonita, parecia um campo de futebol, cheia de casinhas, tudo retinho. Chegando no aeroporto, já me apaixonei”.
“Eu estava em João Pessoa, na capital da Paraíba, mas aluguei um carro só para conhecer uma obra dele em Campina Grande, o Museu dos Três Pandeiros. Fica em cima da água, do Açude Velho”.
Guia de turismo e historiador nas horas vagas
Everaldo Batista, zelador do Edifício Triângulo, no Centro de São Paulo — Foto: Fábio Tito/g1
É possível dizer que Everaldo é uma das pessoas com mais propriedade no mundo quando o assunto é o Edifício Triângulo. Ele atua como um guia turístico do local praticamente todos os dias.
“Me sinto orgulhoso disso, de entender sobre o prédio, porque acho que outras pessoas que trabalharam aqui não sabiam nada”.
Inclusive, ele se mostrou disponível para receber todo mundo que tiver interesse em saber mais sobre o prédio — é só dar as caras lá no Centro e pedir com educação.
“Quase todos os dias vem gente visitar… Aqueles grupos que fazem passeio no Centro. Eles falam muito do painel, mas fica meio escondido, não tem uma divulgação”.
“Já fiz isso diversas vezes com estudantes, professores também vêm. Eles sabem das histórias, mas as que não sabem eu vou repassando pra eles. Sei de muita coisa”, garantiu.
E ele tem como provar: orgulhoso, Everaldo mostrou o trabalho de curadoria que faz há cerca de 20 anos — são dezenas de reportagens que falam sobre o Triângulo reunidas em uma pesada pasta que carrega a história do edifício.
O zelador, que aparece em reportagens que falam sobre o painel de Di Cavalcanti desde 2003, mostra um informativo que ganhou do Museu da Casa Brasileira com as 100 obras mais famosas de Niemeyer. “Gênio”, pontua.
Everaldo Batista, zelador do Edifício Triângulo, no Centro de SP — Foto: Fábio Tito/g1
Everaldo Batista, zelador do Edifício Triângulo, no Centro de SP — Foto: Fábio Tito/g1
Fonte: G1