MPF denuncia casal por manter mulher em trabalho análogo à escravidão por 33 anos em SP


Idosa ficou por 33 anos em trabalho análogo à escravidão

Idosa ficou por 33 anos em trabalho análogo à escravidão

O Ministério Público Federal (MPF) denunciou um casal por manter uma mulher em condições análogas à escravidão durante 33 anos em São Paulo (SP). A lei prevê pena de reclusão de dois a oito anos para quem comete o crime.

A trabalhadora, hoje com 70 anos, prestava serviços domésticos à família no Brás, Centro da capital paulista, e em uma loja do casal no mesmo bairro.

Segundo o MPF, ela não recebia salários, nem tinha os demais direitos trabalhistas. Também cumpria jornadas exaustivas, vivia em condições precárias na casa dos empregadores e chegou a sofrer agressões físicas e constrangimentos morais.

A vítima foi resgatada em 2022 após pedido do Ministério Público do Trabalho. Mas a situação já era conhecida pelo poder público há oito anos, quando foi feita uma denúncia anônima à Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos, em 2014.

Em depoimento às autoridades, o casal procurou eximir-se de responsabilidade afirmando que consideravam a mulher uma pessoa “da família”. De acordo com o MPF, alegações desse tipo são frequentemente rejeitadas em processos judiciais contra empregadores domésticos por não constituírem justificativa para o descumprimento de direitos trabalhistas.

33 anos

Janaína Silva* começou a trabalhar como empregada doméstica e babá para o casal em 1989. Nos primeiros meses, até recebeu salário pelos serviços, mas, quando quebrou uma máquina de lavar, passou a trabalhar para pagar o prejuízo. E não voltou a receber mais. Foram 33 anos trabalhando das 7h à meia-noite, na casa e no comércio dos patrões, sem dinheiro ou documento.

O nome da idosa foi trocado nesta reportagem, porque a vítima prefere não ser identificada. O nome dos empregadores também foi omitido, já que ainda não foram condenados pelo Judiciário.

Em 2022, 1.178 trabalhadores foram resgatados de situações do tipo no Brasil, vítimas do trabalho análogo à escravidão, segundo dados do Ministério do Trabalho. Em São Paulo, 119 pessoas foram resgatadas entre janeiro e julho do ano passado.

Janaína foi uma delas. Ela nasceu no interior do estado e foi abandonada pela família biológica, que vivia em extrema pobreza. Morou em orfanatos até os 18 anos e, quando atingiu a maioridade, veio para a capital, onde passou a viver em abrigos.

Foi tirada de um centro de acolhida em 1989 pelo casal de comerciantes, quando eles tiveram o primeiro filho. Janaína então passou a residir na casa da família e cuidar das crianças.

33 anos depois, ela trabalhava e morava com o casal, em uma edícula nos fundos da residência. Só recebia alguma ajuda financeira quando precisava comprar roupa ou item básico.

Segundo a denúncia do MPT, Janaína “nunca teve carteira de trabalho assinada, nem recebeu qualquer direito como férias, descanso remunerado, décimo terceiro, recolhimento de INSS, e demais benefícios garantidos por lei”.

Ela era “responsável na casa por arrumar, limpar, lavar e organizar tudo. O trabalho tinha horário de entrada às 7h da manhã, mas não tem saída, podendo ir até meia noite ou mais. A trabalhadora também precisava abrir o comércio dos patrões no período da manhã e aguardar os mesmos chegarem para retornar à moradia e dar continuidade às atividades domésticas”.

Janaína também perdeu os documentos e ficou muitos anos sem qualquer identificação. Só em 2014 foi orientada a retirar a segunda via do RG e carteira de trabalho.

Foi o ano em que foi feito um acordo entre a Superintendência Regional do Trabalho e os empregadores: eles se comprometeram a regularizar a situação de trabalho, pagando as dívidas trabalhistas e realizando o registro da empregada. O casal também prometeu comprar uma pequena moradia para Janaína quando fosse concluída a venda do imóvel onde residem. Nada disso aconteceu.

Em uma reunião, naquela época, eles confessaram que Janaína prestava serviços domésticos todos esses anos: “é pessoa de extrema confiança, e de fato, cuidou dos nossos filhos quando eram menores, bajula todos até hoje e sempre cuidou da casa”.

Já a idosa, explorada por tantos anos, dizia se sentir uma pessoa da família. Quando foi resgatada, disse que precisava de autorização para sair e se despedir do casal.

O Ministério Público do Trabalho recebeu a denúncia sobre a situação dela de um centro de assistência social, onde Janaína era atendida.

Segundo a procuradora do trabalho Alline Oishi, que fez o pedido de resgate à Justiça, “os fatos narrados são extremamente graves e podem configurar o crime de redução à condição análoga à de escravo, nas modalidades ‘trabalho em condições degradantes’ e ‘jornada exaustiva’, nos termos do artigo 149 do Código Penal”.

O MPT agora pede que os patrões paguem os valores devidos à idosa pelos anos trabalhados, que somam cerca de R$ 500 mil. Ela foi acolhida pelo órgão, que tem uma equipe responsável por buscar moradia e assistência psicológica e financeira para vítimas do trabalho análogo à escravidão no estado.

Segundo a procuradora Oishi, o “pós-resgate” no caso das trabalhadoras domésticas é o mais difícil e que exige mais apoio do poder público. “Elas realmente acreditam que eram da família, que eram queridas, não exploradas. E, ao contrário de outros trabalhadores, que podem voltar para sua família ou seu estado, essas pessoas costumam estar sozinhas e extremamente vulneráveis depois de tantos anos vivendo na casa dos patrões.”

No ano passado, a Justiça concedeu uma liminar obrigando os patrões ao pagamento de pensão de um salário mínimo à trabalhadora enquanto corre o processo.

1.178 trabalhadores resgatados

Alojamento de trabalhadores resgatados em Guariba em SP — Foto: MPT/Divulgação

Alojamento de trabalhadores resgatados em Guariba em SP — Foto: MPT/Divulgação

Este ano, 1.178 trabalhadores foram resgatados nessas situações no Brasil, vítimas do trabalho análogo à escravidão. As vítimas foram encontradas em 242 ações da Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo (Detrae), do Ministério do Trabalho, entre janeiro e julho deste ano.

As operações envolveram vários órgãos, além dos auditores-fiscais do trabalho, como a Polícia Federal, o Ministério Público Federal, Ministério Público do Trabalho, a Defensoria Pública da União e a Polícia Rodoviária Federal.

O número já ultrapassa os dados de 2019, quando 1.131 pessoas foram resgatadas, e 2020, quando 936 trabalhadores foram encontrados. E se aproxima do total do ano passado, de 1.959 trabalhadores resgatados.

Desde o início da série histórica, em 1995, foram retiradas de situações de exploração mais de 58 mil pessoas no país.

Em São Paulo, em 2022, foram 119 casos. Mas a maioria dos resgatados estavam nos estados de Goiás, Minas Gerais e Acre, e principalmente na área rural. Na capital paulista, os casos em geral são de trabalhadores da construção civil e da indústria têxtil.

“Na construção civil, o trabalhador em geral vem de outro estado, vítima de tráfico de pessoas, e não recebe o salário. Chega a passar fome. Também tem mais de 10 mil oficinas de costura na cidade e parte delas explora imigrantes, com jornadas das 7h às 22h, seis dias por semana. E existe dificuldade em saber que marca se beneficiou disso na ponta da cadeia porque a gente não encontra as notas fiscais nem as etiquetas”, diz a procuradora Alline Oishi.

Nos últimos anos, surgiram também muitas denúncias sobre trabalhadoras domésticas exploradas, segundo Oishi. Um tipo de exploração mais difícil de denunciar, já que ocorre dentro de uma residência.

Em julho do ano passado, a Operação Resgate 2, conjunta de vários órgãos, resgatou 337 trabalhadores em situações de escravidão moderna pelo país, em 22 estados e no DF.

Fonte: G1

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