Instituições federais de SP só conseguiram preencher 13% das vagas de cotas para pessoas com deficiência em 2022


  • A Universidade Federal Paulista (Unifesp) reservou 130 vagas pelas cotas pelo Sisu e pelo vestibular misto, mas preencheu 90 (69%);
  • A Universidade Federal do ABC (UFABC) teve 176 vagas na cota pelo Sisu, mas preencheu 24 delas (14%);
  • A Universidade Federal de São Paulo (UFSCar) ofereceu 332 vagas no Sisu e preencheu 39 (12%);
  • E o Instituto Federal de São Paulo (IFSP) teve um total de 900 vagas reservadas para cotistas com deficiência, tanto no Sisu quanto em outros processos seletivos, e 53 delas (6%) foram ocupadas por esses estudantes.

 

As vagas remanescentes acabam sendo redirecionadas a outros candidatos, como os da ampla concorrência. Veja, no fim da reportagem, o que dizem as instituições.

Segundo especialistas, os obstáculos que impedem que mais pessoas com deficiência consigam disputar as vagas, ser aprovadas e garantir a matrícula envolvem desde o alto índice de evasão no ensino básico ao excesso de entraves burocráticos para que cotistas consigam comprovar a condição de deficiência para poderem assistir às aulas.

Evasão alta no ensino médio

 

Professor da UFSCar, Leonardo Santos Amâncio Cabral faz parte da diretoria da Associação de Pesquisadores em Educação Especial (APEE) e dedica a carreira acadêmica à pesquisa sobre a acessibilidade na educação. Ele explica que a evasão escolar para as pessoas com deficiência cai conforme avançam as etapas do ensino básico.

De acordo com dados do Censo da Educação Básica de 2019 analisados por ele, as matrículas na educação especial representavam 3,8% do total de matrículas dos anos iniciais do ensino fundamental.

Nos anos finais do fundamental, a porcentagem foi de 3,4%. Mas, no ensino médio, ela cai quase pela metade, para 1,8% do total de matrículas.

Muitos fatores, diz ele, fazem com que grande parte dos estudantes com deficiência nem sequer consigam terminar o ensino médio. A começar por concepções equivocadas sobre a condição de deficiência, que levam a comunidade escolar a infantilizar a pessoa com deficiência, a evitar se aproximar dela ou confundir sua deficiência com uma doença, além de atrelar a condição de deficiência a questões religiosas ou míticas.

“Estudantes, docentes, discentes, gestores, familiares e equipes multidisciplinares podem, isolada ou coletivamente, potencializar estereótipos e situações de discriminação negativa e vulnerabilidade”, explica Cabral.

Outros problemas, de acordo com o pesquisador, envolvem a alta competitividade da sociedade atual, que acaba estimulando “o capacitismo estrutural e a lógica meritocrática da acessibilidade em detrimento de perspectivas biopsicossociais”.

Essa questão se acentua no ensino médio, onde “a competitividade é mais estimulada do que a formação humana na perspectiva do reconhecimento das diferenças”, e é aprofundada pela falta de formação continuada dos professores.

Ao chegar ao fim do ensino médio, segundo o professor da UFSCar, a pessoa com deficiência também corre o risco de ser negativamente influenciada pela “perspectiva da produtividade” ao pensar sobre carreira e mercado de trabalho. “Isso pode influenciar, de forma negativa, a escolha do curso pelo próprio aluno”, explica Cabral.

“Quando não desencorajadas de concluir o ensino médio e ingressar na educação superior, as pessoas com deficiências tendiam (antes do Sistema de Reserva de Vagas) a ter interesse por cursos da área de humanidades, sugerindo um estigma social que atrela as competências profissionais (ou a falta delas) às condições de deficiência nas áreas de saúde e exatas”, observa Leonardo Cabral, professor da UFScar.

Rafaela Dantas, aprovada em medicina na Unifesp, criou um grupo de apoio para estudantes com deficiência na universidade — Foto: Arquivo pessoal/Rafaela Dantas

Rafaela Dantas, aprovada em medicina na Unifesp, criou um grupo de apoio para estudantes com deficiência na universidade — Foto: Arquivo pessoal/Rafaela Dantas

Apoio mútuo entre cotistas

 

Estudante de medicina, Rafaela Dantas entrou na primeira turma das cotas da Unifesp e planeja se formar no fim deste ano. Como nasceu com antebraço direito atrofiado com a mão fechada e um desvio dos ossos do antebraço, durante a vida escolar ela precisou conciliar os estudos com os tratamentos médicos, terapia ocupacional, fisioterapia, ortopedia e quatro cirurgias, a última realizada enquanto ela fazia cursinho pré-vestibular.

“Depois que eu entrei na faculdade, comecei a perceber muito mais a minha mão e muito mais a minha condição”, conta ela.

“Cheguei a ter um episódio no primeiro ano em que um professor não tinha percebido que eu tinha deficiência e fez um comentário. Ele estava fazendo uma demonstração e falou: ‘Até parece que a sua mão é torta’. Na verdade, ele não tinha percebido que realmente tinha um desvio. Eu fiquei muito chateada.”

Ao longo da faculdade, ela desenvolveu um trabalho de pesquisa e conversa com outros alunos com deficiência, que relataram suas dificuldades. Foi assim que conseguiu criar um espaço de diálogo para o grupo poder se ajudar com o passar dos anos. Segundo ela, isso a ajudou no processo de autoaceitação, principalmente por ficar acanhada nas aulas práticas, já que precisa se mexer de forma diferente, levava mais tempo que os colegas e se sentia inferior por isso.

“Hoje eu tento passar confiança para o paciente porque, apesar de eu ser diferente, posso tratá-lo com excelência e atendê-lo da melhor forma possível. Anda existem olhares, isso será para a vida inteira, mas eu sou assim e me amo assim. Eu posso ser segura, uma boa profissional e um ser humano que respeita os outros e a si mesma”, afirma Rafaela Dantas.

 

Lucas Novaes precisou acionar a Justiça em 2022 para garantir a matrícula no curso de relações internacionais na Unifesp — Foto: Arquivo pessoal/Lucas Novaes

Lucas Novaes precisou acionar a Justiça em 2022 para garantir a matrícula no curso de relações internacionais na Unifesp — Foto: Arquivo pessoal/Lucas Novaes

Matrícula garantida na Justiça

 

Na edição 2022 do Sisu, Lucas Novaes, que tem deficiências físicas decorrentes de uma doença autoimune em estágio avançado, foi aprovado em relações internacionais na Unifesp. Ele enviou todos os documentos para garantir a matrícula, mas recebeu a notícia do cancelamento. Segundo ele, o motivo apresentado pela universidade foi o fato de o Código Internacional de Doenças (CID) não ter sido indicado na ressonância magnética anexada aos documentos.

Para não perder a vaga, ele precisou entrar na Justiça. De acordo com seu advogado, Irapuã Santana, “a reserva de vagas, tanto para pessoas com deficiência quanto para quaisquer outras minorias, precisa atender ao espírito da lei, que é o da inclusão”.

“Se o objetivo é trazer mais pessoas para dentro das universidades, é preciso desenvolver um sistema no qual não se dificulte a entrada dessa parcela da população”, observa Santana.

 

Além de abrir as portas para o ingresso de alunos pela cota, as universidades precisam, na opinião dele, oferecer apoio na permanência deles até a formatura. “O trabalho de inclusão é mais profundo e demanda a quebra de um discurso de séculos e séculos. Já avançamos muito, mas é imprescindível buscar outras ferramentas para ir mais longe.”

Por causa da dificuldade de locomoção, a Unifesp oferece a Lucas atividades domiciliares por meio de um atestado ou declaração médica. Ele também poder usar a equipe pedagógica presente nas diversas unidades, que oferece suporte em relação às disciplinas.

Corrida contra a burocracia

 

Letícia Climent não precisou acionar a Justiça, mas passou por sufoco para garantir a confirmação da matrícula em administração na Unifesp. Ela passou na terceira chamada e teve pouco tempo para conseguir os documentos exigidos, principalmente o “atestado de funcionalidade”, que ela não conhecia. Segundo ela, a universidade recusou sua documentação, sem informar qual documento estava com problemas, e lhe deu três dias para resolver a papelada.

Quando percebeu que o problema estava no atestado de funcionalidade, ela pagou por uma consulta de um médico ortopedista para preencher e assinar corretamente o documento.

Segundo a estudante, ela teve condições de arcar com esse gasto, mas outros cotistas, principalmente de baixa renda, podem acabar fora da universidade por causa disso.

Além da questão financeira, o excesso de burocracia também é um entrave, segundo o pesquisador Leonardo Cabral. “A linguagem jurídica dos editais nas instituições da educação superior é um dos aspectos que temos nos debruçado, pois independentemente de ter deficiência, a linguagem para estudantes que estão finalizando o ensino médio não contribui para que as pessoas candidatas se inscrevam com autonomia.”

O que dizem as federais paulistas

Em nota, a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) afirmou que o não preenchimento de todas as vagas reservadas pelo cotistas é resultado de vários fatores, como o fato de alguns cursos terem mais procura que outros. Para evitar que as notas mínimas do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) adotadas pela Unifesp no Sisu evitem que candidatos com deficiência consigam disputar as vagas, a instituição diz que “desde 2020 tem conversado anualmente com os coordenadores de forma a estabilizar ou até mesmo diminuir a exigência de notas mínimas, o que permite incluir mais candidatos(as) no processo”. No vestibular misto, as notas mínimas seguem as mesmas, mas não sofreram aumento, diz a nota.

Outra questão citada pela universidade é o fato de que as cotas determinadas por lei incidem apenas entre os estudantes que estudaram em escola pública. “Muitos(as) candidatos(as) se inscrevem para preenchimento de vagas para pessoas com deficiência, sendo oriundos de escola privada. Contudo, muitos desses estudantes possuem bolsa integral no ensino médio, fugindo do que determina a Lei 12.711.”

Já sobre os entraves burocráticos, a Unifesp afirmou que “os editais com a informação de quais tipos de documentos serão exigidos para a comprovação da deficiência são publicados bem antes do início do processo de vestibular” e que os candidatos “infelizmente deixam de ler o edital do processo de vestibular, o que daria a possibilidade de anteciparem a organização dos documentos exigidos”.

A Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) informou por nota que, além das proporções mínimas previstas pela Lei Federal de Cotas, também aplica outros critérios para aumentar a possibilidade de ocupação de vagas pelas pessoas cotistas. Ela citou uma portaria que “prevê que o candidato inscrito sob modalidade de reserva de vaga que atingir nota maior que os demais concorrentes, ingressará como ampla concorrência, possibilitando que mais candidatos inscritos e classificados sob a Lei n. 12.711/2012 (alterada pela Lei n. 13.409/2016) fossem convocados para assumirem vagas na graduação”.

Sobre a baixa ocupação das vagas destinadas às pessoas com deficiência, a instituição diz que “ainda não há dados e estudos suficientes que possam auxiliar uma análise, até por se tratar de resoluções que aconteceram a partir do ingresso de 2017, ou seja, uma política ainda nova no contexto do ensino superior”.

Já em relação à burocracia do processo seletivo, a UFSCar afirma que, por se tratar de um processo seletivo público, “quando se trata das vagas de reserva, há a necessidade de apresentar um número maior de documentos que, além de comprovarem o direito da pessoa em concorrer nessas modalidades, inibem possíveis tentativas de fraude”. Ainda de acordo com a universidade, “também é importante destacar que toda a apresentação dos documentos solicitados, preenchimentos de formulários e possíveis entrevistas com os candidatos(as) se dão de forma remota, sem a necessidade de comparecimento ao campus do curso no qual o candidato(a) concorre”.

De acordo com a Universidade Federal do ABC (UFABC), “a legislação impõe condições aos candidatos cotistas que precisam ser checadas no processo de matrícula, dentre as quais a frequência integral na educação básica pelo ensino público e laudo médico comprovando a condição de pessoa com deficiência. Isso é necessário para que as vagas não sejam ocupadas por pessoas fora da norma”. Além disso, a universidade afirmou que reserva vagas para pessoas com deficiência, “desde antes da obrigatoriedade legal”, e que essas vagas também são estendidas para estudantes com deficiência que frequentaram instituições privadas.

A universidade afirma que “a burocracia pode ser um complicador”, já que exige que o laudo tenha o registro do médico que assina, e inclua o código da doença, mas que isso serve “exatamente para garantir que a vaga seja ocupada por quem tem direito”, e que “existem fatores diversos a serem considerados na análise do não preenchimento”.

Já sobre as vagas remanescentes, a UFABC diz que a reserva de vagas “tem por base dados populacionais do IBGE na unidade federativa”, e que “essa referência pode não refletir o número de pessoas com deficiência com interesse em instituição federal específica e de determinada região”.

Diz, ainda, que a baixa procura pode ser reflexo da “trajetória das pessoas com deficiência na educação básica, já que muitos — mesmo levando em conta os avanços das políticas inclusivas — enfrentam barreiras adicionais à conclusão desse período de formação”. E que “há também a possiblidade de desconhecimento, por parte de frações desse grupo, da política de reserva de vagas e do funcionamento do sistema Enem e Sisu”.

O Instituto Federal de São Paulo afirmou, em nota, que “nenhum aluno com deficiência deixou de ser matriculado nos últimos anos por deixar de entregar documentos no ato da matrícula”, e que investe na ampla divulgação das vagas.

“Todas as vagas são amplamente exploradas nas redes sociais da Reitoria, bem como nas redes sociais oficiais de cada um dos campi. Não obstante, divulgamos nos sites dos campi e da Reitoria sobre cada uma das etapas de todos os nossos editais na aba ‘Estude Aqui’, onde todos os nossos futuros alunos se orientam sobre cada um dos nossos processos seletivos, além de produzir os vídeos tutoriais sobre o passo a passo que cada candidato dever-se-á cumprir”, informou o instituto.

No processo seletivo de 2023, o IFSP acabou oferecendo menos vagas para pessoas com deficiências no Sisu por conta de um problema técnico: como o instituto usa a porcentagem de 7,3% do total de vagas para pessoas de escola pública (ou seja, metade do total universal de vagas na instituição), e como a maioria dos cursos só tinha um total de 40 vagas, eles acabaram não chegando, no cálculo proporcional automático do sistema, ao valor de 1 vaga reservada para as cotas.

Por causa desse problema matemático, o Sisu permite que as instituições nessa situação, ou que queiram ir além das cotas mínimas obrigatórias por lei, aumentem manualmente as vagas em cada categoria de disputa, mas o IFSP acabou não fazendo isso dentro do prazo.

Em nota à TV Globo, o pró-reitor de ensino, Carlos Procópio, afirmou que, neste ano, o instituto divulgará uma lista de vagas remanescentes “tão logo terminem as chamadas do Sisu”. Ele explicou, porém que os interessados já podem se inscrever nos editais dos Cadastros de Reserva. “Estes editais são lançados por cada campus e devem destinar 4 vagas para pessoas com deficiência em cada curso que ainda houver vaga. Vale lembrar que o IFSP também estuda um edital de transferência na qual as vagas para pessoas com deficiência serão priorizadas”, afirmou Procópio.

*Com supervisão de Ana Carolina Moreno
Fonte: G1

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