PM é acusada de transfobia contra irmãs trans em SP: ‘Vai fazer RG no nome de mulher’
Lei estadual de 2010 obriga funcionários públicos a chamarem as pessoas pelo gênero pelo qual se identificam, mesmo se ainda não tiverem mudado os documentos. Vídeo mostra policial xingando grupo em Osasco: ‘Por enquanto é homem’. Polícia Militar vai apurar conduta.
PM feminina xinga mulheres trans com palavrão e as chama de homem na Grande SP
Vídeo que circula nas redes sociais mostra o momento em que uma policial militar chama duas irmãs transexuais de “homem” durante atendimento a uma ocorrência de atropelamento em Osasco, na Grande São Paulo (veja acima).
“Ah, vai se f*, vai”, disse a agente da Polícia Militar (PM) na filmagem. “Quer que chame de mulher, vai trocar o nome da certidão. Vai fazer um RG no nome de mulher. Por enquanto é homem”.
As palavras transfóbicas foram gravadas por um amigo das vítimas na noite do último domingo (30), em frente a uma tabacaria. As imagens foram compartilhadas pela internet e viralizaram. O Dia Nacional da Visibilidade Trans havia sido comemorado no sábado (29).
A Polícia Militar (PM) informou nesta quinta-feira (3) ao g1 que irá apurar a conduta da agente e orientá-la a chamar as pessoas transgênero por seus nomes sociais.
Uma lei estadual de 2010 obriga funcionários públicos a chamarem as pessoas pelo gênero pelo qual se identificam, mesmo se ainda não tiverem mudado os documentos.(leia abaixo a nota da corporação).
O nome da policial não foi informado pela PM. A reportagem não conseguiu identificar e localizar a agente para comentar o assunto.
Luna e Aghata Nunes acusam policial militar mulher de transfobia em Osasco, Grande SP: ‘Quer que chame de mulher, vai trocar o nome da certidão’, diz agente da PM em vídeo que viralizou nas redes sociais — Foto: Reprodução/Redes sociais
O g1 conversou com as irmãs, que são influenciadoras digitais e foram vítimas. Elas disseram que pretendem fazer um boletim de ocorrência na Polícia Civil contra a policial militar e outros policiais militares por transfobia. Eles também teriam ofendido outras trans, amigas das irmãs.
Pela lei, a delegacia poderia registrar o caso como injúria racial de natureza transfóbica (saiba mais nesta reportagem).
“A PM me chamou de ‘ele’ e eu não percebi, mas minha irmã notou e falou: ‘É ela’”, disse Luna Nunes, de 22 anos. “Eu acho que a PM, até por ela ser uma mulher, deveria respeitar o direito de sermos chamadas como somos”.
“Foi bem horrível. Ela foi transfóbica e ponto final. Ela repetiu: ‘É homem, é homem’”, disse Agatha Nunes, de 20 anos, que é conhecida como Afonsinha. “Vindo de uma PM mulher cisgênero, sendo transfóbica… foi muito pesado”.
Luna e Aghata Nunes são influenciadoras digitais — Foto: Reprodução/Arquivo pessoal
Luna e Aghata falaram foram ofendidas pela policial militar quando estavam ao lado de outras quatro mulheres trans e dois gays.
Elas contaram que o grupo de amigos havia chamado a PM e uma ambulância para atender um casal que tinha sido atropelado por um carro numa rua em frente a tabacaria. O motorista atingiu a moto das vítimas depois de discutir e agredir a namorada dele, segundo as irmãs.
“Chegamos a socorrer a namorada do cara”, disse Luna. Ela e os amigos não conheciam o casal e nem o atropelador.
De acordo com as irmãs, a policial passou a ofendê-las depois que suas amigas identificaram o atropelador e pediram para a agente e outros PMs abordarem o homem. Outros policiais também foram transfóbicos com o grupo, segundo as influencers.
As irmãs Luna e Aghata Nunes acusam PM mulher de ter sido transfóbica com elas — Foto: Divulgação/Arquivo pessoal
“Quando a viatura chegou com dois PMs para atender o casal atropelado, eles nos trataram no gênero masculino, usando o pronome ‘ele’, e pediram para a gente se afastar. Fizeram chacota, rindo de nossas caras, já cometendo transfobia”, afirmou Aghata.
“Depois identificamos o atropelador dentro da tabacaria e pedimos para a PM ir lá. Mas os policiais disseram que nós devíamos entrar lá sozinhas e chamar o homem”, contou Luna.
“Respondi: ‘Meu anjo, quem está trabalhando como policial é você. Por isso que o Brasil não vai pra frente”, afirmou Aghata.
Depois disso, a policial militar chamou as amigas trans pelo pronome masculino, segundo as irmãs.
“Foi quando eu disse para a PM: ‘Elas’. Aí ela começou a transfobia: ‘É ele, é ele’. E foi o que vocês viram no vídeo que nosso amigo gravou”, disse Aghata.
- Aghata – Mas também se acha a gostosona.
- PM – Ah, vai se f*, vai.
- Amigo – Ô, Amanda, eu tô filmando. Qualquer coisa tu me chama, viu?!
- PM – Só quer saber de ler, vai estudar.
- Amigo – Vem Amanda.
- PM – Quer que chame de mulher, vai trocar o nome da certidão. Vai fazer um RG no nome de mulher. Por enquanto é homem. Vai, rapa fora daqui.
Deputada estadual Erica Malunguinho (PSOL) se manifestou sobre o vídeo da PM sendo transfóbica — Foto: Reprodução/Arquivo pessoal
Segundo o advogado Dimitri Salles, presidente do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (Condepe), as irmãs e as amigas trans ofendidas pelos PMs podem registrar boletim de ocorrência na delegacia para denunciar que foram vítimas de transfobia.
“Se a gente pegar a lei de racismo, poderia ser colocada como injúria racial de natureza transfóbica”, falou Dimitri ao g1.
De acordo com ele, o decreto número 55.588 do governo de São Paulo, de 17 de março de 2010, obriga todo servidor público do estado a tratar travestis e transexuais pelo seu nome social.
“Em caso de descumprimento, o servidor responderá a processo baseado na lei estadual 10.948 de 2001 que é de combate à discriminação de natureza homofóbica e transfóbica”, disse Dimitri.
O presidente do Condepe informou ainda que a policial militar que aparece no vídeo sendo transfóbica pode ser punida administrativamente pela PM. “E a Secretaria de Justiça pode acionar o Ministério Público [MP] para abrir processo contra a agente”.
Em 2019, reportagem do g1 mostrou dados do governo estadual sobre processos administrativos por discriminação em razão de orientação sexual e identidade de gênero desde 2002. Os números mostraram, naquela época, que a Secretaria da Justiça e Cidadania de São Paulo instaurou 404 processos nos últimos 17 anos. Desses, 136 resultaram em condenação, com a determinação do pagamento de multa – ou seja, cerca de um em cada três casos.
Secretaria da Justiça, no Páteo do Collegio, onde tramitam os processos administrativos por discriminação contra LGBTs — Foto: Cíntia Acayaba/G1
O caso da PM transfóbica também provocou manifestações entre ativistas e políticas LGBTQIA+.
“Jamais iremos aceitar que uma agente pública, pertencente a uma instituição do povo paulista continue espalhando ódio sobre quem quer que seja, independentemente da orientação sexual, identidade de gênero, da cor da pele”, disse o ativista Agripino Magalhães.
“Enquanto deputada, seguirei fiscalizando para que situações como essas não sejam naturalizadas. Travestis e pessoas transexuais são cidadãs/cidadãos e exigem respeito. Inclusive, da Polícia Militar”, escreveu a deputada estadual Erica Malunguinho (PSOL).
“Violência do estado vindo de agentes da polícia contra pessoas trans não é nenhuma novidade. E é assustador que mesmo uma PFem reproduza o processo tão violento de deslegitimar a identidade de gênero de uma mulher trans sem qualquer constrangimento”, escreveu a Associação Nacional de Travestis e transexuais (Antra) na página de Luna no Instagram, após ela postar o vídeo na qual a PM ofende ela, sua irmã e amigas.
Por meio de nota, a PM informou à reportagem que “foi instaurado procedimento interno para analisar a conduta da policial, que também será reorientada.”
Trans e gays fazem vídeo contra a transfobia. Na filmagem aparecem Luna e Aghata Nunes além de amigas e amigos que estiveram com elas quando a PM as ofenderam em Osasco
Fonte: G1