Como Pinheiros deixou o passado de sobradinhos para ser bairro de espigões e lugares descolados

É difícil andar pela região sem ver termos como ‘plant based’ e ‘supreme living’

Bar com mesas e cadeiras na calçada na rua Benjamim Egas, em Pinheiros

Bar com mesas e cadeiras na calçada na rua Benjamim Egas, em Pinheiros Eduardo Anizelli/Folhapress

28/10/2021 13h02 Guilherme Genestreti São Paulo

“Pinheiros, melhor bairro do mundo.” Poucas coisas sintetizam tão bem a versão pós-Covid do distrito da zona oeste paulistana do que a inscrição no tapume de uma obra —mais uma—, na esquina das ruas João Moura e Teodoro Sampaio, estampada pela construtora como se tivesse sido produto de pichação, para dar um ar descoladinho ao empreendimento.

Quem habita o espaço delimitado entre a rua Cardeal Arcoverde e as avenidas Rebouças, Doutor Arnaldo e Pedroso de Morais teve de se acostumar a uma trilha sonora à base de marreta e britadeira durante a quarentena.

Levantamento da BBC aponta que 28% de todos os alvarás de demolição emitidos no ano passado na cidade de São Paulo se concentraram nessa subprefeitura, a campeã paulistana. Não é exagero a sensação de que não existe quarteirão por ali que não tenha alguma obra. 1 14

Pinheiros vira bairro de espigões e lugares descolados

Quer dizer, há sim. Num trecho sem saída da rua Virgílio de Carvalho Pinto, uma associação de moradores do bairro pendurou um banner pedindo socorro. “Queremos casas, não apartamentos”, escreveram, emendando um “SOS do único quadrilátero baixo”, um dos últimos redutos de vilas que, até o início dos anos 2000, ainda eram comuns na paisagem.

Mas isso quando Pinheiros ainda era um bairro de classe média sem muito a chamar a atenção fora o fato de ser a passagem entre as vitrines proibitivas dos Jardins e a boemia pasteurizada da Vila Madalena.

Tirando a tradicional feira da praça Benedito Calixto, aos sábados, e, próximo dali, o Teatro Lira Paulistana —celeiro da Vanguarda Paulista e fechado desde os anos 1980, hoje uma padaria—, o que predominava era um clima meio soporífero.

A coisa começou a mudar na esteira da gourmetização da rua dos Pinheiros, que se tornou um corredor gastronômico badalado, da expansão da linha amarela do Metrô e da reforma do largo da Batata, outrora coalhado de botecos risca faca.

Feirinha da praça Benedito Calixto, em Pinheiros
Feirinha da praça Benedito Calixto, em Pinheiros – Eduardo Anizelli/Folhapress

“Isso aqui está irreconhecível”, diz o baiano Alberico Rodrigues, morador do bairro desde idos dos anos 1970, quando, segundo conta, fugiu da casa do pai, um coronel que o queria médico, para estudar literatura em São Paulo. Desde 1997 ele toca um espaço que leva o seu próprio nome, na Benedito, um misto de “sebo, livraria, biblioteca, teatro, galeria de arte, cafeteria” e tantas outras atividades anunciadas no banner da entrada, ao lado de um enorme busto de Machado de Assis.

“É uma referência na cidade toda”, diz Rodrigues, sem modéstia alguma, próximo de uma mesa atulhada de exemplares dos oito livros que escreveu —um deles, “O Alfarrabista e o Psicanalista”, com uma ilustração que traz o autor ao lado de Sigmund Freud, se passa ali no bairro.

Caso a obra fosse ambientada neste ano, seria recomendável que os personagens tivessem um diploma de inglês básico ou talvez não conseguissem decifrar as vitrines de Pinheiros, cheias de “spring review”, “green kitchen”, “supreme living”, “apple factory e “best shape”.

“Smart e-bike” é o que o vende uma loja de bicicletas elétricas —o “smart”, no caso, é um sensor de subidas e descidas que diz ajudar na pedalada de quem se dispor a desembolsar quase R$ 9.000 por essas “maquininhas disfarçadas”, como fala o vendedor.

Pega bem aos restaurantes fixar o cardápio, sem os preços, numa lousa de giz na calçada. Se houver um parklet na frente, melhor ainda. Até a mesquita Hamza tem futon e iluminação de cafeteria.

Pratos do restaurante
Produtos do Purana.Co, em Pinheiros, que aposta em cardápios ‘plant based’ – Helena Mazza/Divulgação

Na mesma rua, a Cônego Eugênio Leite, há uma banca que vende garrafas de switchel, bebida não alcoólica que vem em garrafas que parecem de cerveja premium e serve para não deixar os abstêmios sobrando, diz a vendedora —dois litrões saem por R$ 70. Ela ainda apresenta toda uma linha de chás com “proposta de lifestyle e pegada ayurveda”.

O aFlora, que se diz um centro de autocura urbano, oferece espaço de coworking e meditação atrás de seu canteiro de costelas-de-adão e envia por WhatsApp a palavra do dia, que vai reger a rotina.

No café Purana, o cliente descobre que se completar os nove carimbos de um cupom ganha uma mousse e um chá e terá poupado 126 quilos de emissão de gás carbônico, segundo a cartela de impacto positivo —mas não sem antes ter de desembolsar R$ 540, já que cada carimbo é dado após R$ 60 consumidos.

Tudo ali é “plant based”, o oposto do que era a Cantina di Salerno, que entupia a decoração com garrafas de vinho de mesa e paisagens da Toscana, mas que fechou as portas na rua Francisco Leitão para reabrir numa versão sem o charme-pastiche na Henrique Schaumann e encerrar atividades logo depois.

Dos últimos bastiões do velho Pinheiros, sobra o chileno El Guatón no mesmo sobrado de dois andares onde se instalou nos anos 1990 —ufa!—, na rua Artur de Azevedo. O nome faz referência à pança do dono, no espanhol falado na terra de Neruda, e suas empanadas têm muito mais sustância e menos firula do que as da argentina Paola Carosella, que mantém um La Guapa a 500 metros dali.

Fonte: GuiaFolha

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