Internações involuntárias de dependentes químicos da Cracolândia foram ilegais, diz MP

Promotor Arthur Pinto Filho vai instaurar inquérito civil por dano coletivo em razão da não comunicação das internações ao Ministério Público, conforme prevê a lei.


Agentes de saúde circulam pela Cracolândia, no Centro de SP — Foto: Reprodução/TV Globo

Agentes de saúde circulam pela Cracolândia, no Centro de SP — Foto: Reprodução/TV Globo

As internações involuntárias de 22 dependentes químicos da região da Cracolândia, no Centro da capital paulista, realizadas desde abril e divulgadas pela prefeitura no último dia 6, foram ilegais, de acordo com o Ministério Público (MP).

Isso porque parte do trâmite previsto para esses casos não foi realizada: a unidade de saúde que recebe os pacientes deve informar o MP, a Defensoria Pública e outros órgãos de fiscalização sobre as internações em até 72 horas. O Hospital Municipal da Bela Vista – Santa Dulce dos Pobres, para onde os 22 usuários da Cracolândia foram encaminhados, no entanto, não cumpriu o procedimento, previsto na Lei de Drogas sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro (PL) em 2019 e que autoriza a internação sem consentimento de dependentes químicos.

O promotor de Justiça de Direitos Humanos – Saúde Pública, Arthur Pinto Filho, disse à GloboNews nesta segunda-feira (13) que vai instaurar nesta terça (14) um inquérito civil por dano coletivo em razão da não comunicação ao Ministério Público, conforme prevê a lei, da relação de pacientes internados involuntariamente.

“Recebi essa informação no fim da tarde. O Hospital Bela Vista não informou ao nosso Centro de Apoio Operacional Cível quem foi internado”, explicou o promotor. “Vou baixar uma portaria, instaurando esse inquérito por dano coletivo, cujo objetivo, se ocorreu o dano social coletivo, é buscar reparação monetária em quem deu causa ao dano.”

Além da instauração do inquérito civil, o promotor informou que vai oficiar o Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp), para que a conduta do médico responsável por essas internações seja analisada do ponto de vista ético, e também a Promotoria Criminal, que vai avaliar se houve delito ou não por parte de agentes públicos envolvidos nessas internações.

Ele também afirmou que, a partir desta terça, irá apurar também qual a estrutura criada para tratar os dependentes químicos internados contra a vontade deles para que a pessoa não volte para as drogas ou para as ruas.

Em nota, a Secretaria Municipal de Saúde informou que “estão sendo providenciados todos os trâmites burocráticos exigidos pelo Ministério Público (MP) para realizar o cadastro dos pacientes internados no hospital e que assim que o processo for finalizado, todos os dados sobre as internações serão fornecidas ao MP. A pasta permanece a disposição para os devidos esclarecimentos”.

A pasta disse também que o Hospital Municipal da Bela Vista é uma unidade “referenciada para o tratamento da Covid-19, com 88 leitos de clínica geral e 10 de psiquiatria” e que a unidade está em processo de transição para uma unidade para atendimento geral.

Segundo anunciado pela prefeitura, a internação involuntária pode ser solicitada um familiar ou responsável legal do usuário. Os parentes dos dependentes podem solicitar a internação nos 97 CAPS da capital, nas 23 UPAs ou nas tendas do SIAT emergencial, localizada na Rua Helvétia com a São João.

O prefeito Ricardo Nunes (MDB) afirmou que atualmente a capacidade de atendimento é para 200 pessoas, mas poderão ser abertas mais vagas, caso seja necessário.

Desde o fim de maio, operações policiais na região da Cracolândia têm se repetido com frequência. Os usuários deixaram a Praça Princesa Isabel e se espalharam pelo Centro de São Paulo.

Internações involuntárias

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No dia 6, o promotor Arthur Pinto Filho dissera que ainda não havia sido confirmada pela gestão municipal a informação sobre as internações involuntárias.

“Há uma informação da prefeitura, que nós não conseguimos confirmar, de que 22 pessoas já teriam sido internadas involuntariamente. Nós não temos essa informação. Ao contrário, a informação que nós temos é que elas foram internadas voluntariamente. ‘Voluntariamente’ significa que a pessoa pediu a internação”, afirma o promotor.

Pinto Filho ressalta que, segundo a lei, “o objetivo da internação é inserir o cidadão no seu círculo social dando-lhe moradia, trabalho e renda”.

“Porque se o homem sair de uma desintoxicação sem isso, sem esse tipo de apoio, sem esse tipo de estrutura, a história recente, desde 2012, nos mostra que essa pessoa volta para a Cracolândia. E ela volta por uma razão muito simples: ela não tem pra onde ir. Ela não tem casa, não tem trabalho, emprego, nada. O que ela tem? Ela tem a relação com as pessoas da Cracolândia e volta para lá. Então, se não houver a porta de saída estruturada, você vai jogar dinheiro público no lixo”, diz ele.

E finaliza: “Para você resolver o problema da Cracolândia, você tem que ter uma continuidade de trabalho. Se você não tem isso, você sempre parte do zero”.

A vereadora Luana Alves (PSOL) fez, no dia 6, uma denúncia no MP a respeito do caso. Ela solicita uma investigação das reais condições desse tipo de internação, além de apontar as possíveis irregularidades identificadas nas informações prestadas pelo prefeito à imprensa.

“Os fatos indicam evidente violação ao direito a um tratamento digno e à integridade física, dos dependentes químicos em situação de rua da cidade de São Paulo merecendo, portanto, investigação por parte do Ministério Público de São Paulo, por meio da instauração de inquérito e todos os demais meios que possibilitem a atuação no caso”, afirma Alves.

A expectativa da internação espontânea sempre foi a regra nos equipamentos de saúde municipal para atender os dependentes químicos que frequentam a Cracolândia. Mas, na semana passada, a prefeitura informou sobre a mudança de protocolo com as internações involuntárias, que podem ser feitas com laudo médico e autorização dos pais ou responsáveis.

Caso da aposentada Maria Rosa dos Santos, que depois de cinco dias sem notícias do filho de 42 anos, se reencontrou com ele nesta segunda no Caps Redenção, em frente à Praça Princesa Isabel. Além de dependência química, ele sofre de esquizofrenia.

“Ele não estava em condições nem físicas nem mentais nem psicológicas. Se ele não tivesse sido acolhido no Caps, talvez não estivesse nem vivo”, disse a mãe.

A medida é polêmica e já foi adotada por outras gestões, sem resultados visíveis de médio e longo prazos. Mesmo assim, o secretário municipal da Saúde, Luiz Carlos Zamarco, defende que dependentes químicos sejam internados com a autorização de alguém da família ou com o aval de um médico, como autoriza uma lei federal de 2019.

Movimentação na Praça Princesa Isabel, no Centro, um dia após a operação que retirou a Cracolândia do local — Foto: Wagner Vilas/Agência O Dia/Estadão Conteúdo

Movimentação na Praça Princesa Isabel, no Centro, um dia após a operação que retirou a Cracolândia do local — Foto: Wagner Vilas/Agência O Dia/Estadão Conteúdo

“Nós temos vários usuários que não têm o discernimento da quantidade de droga que ele está ingerindo, colocando em risco a própria vida. Então é importante que, nesses casos, com a ajuda de um familiar, a gente encaminhe esse paciente para uma das nossas unidades para que eles façam uma desintoxicação, e a partir da desintoxicação a gente fazer um convencimento pra que ele voluntariamente deixe de usar a droga.”

O psiquiatra e pesquisador da Unifesp Flávio Falcone atua nas ruas do Centro e em hospitais há mais de dez anos. Para ele, o primeiro passo para uma resposta positiva no caso de internações é que o paciente concorde em receber o tratamento.

“O que eu vi acontecer dentro das enfermarias as internações involuntárias não têm uma eficácia para o que elas se propõem porque o vínculo, em primeiro lugar, é feito da equipe da saúde com a família. E a primeira coisa que você precisa para ter algum sucesso num tratamento de dependência é o vínculo do profissional com o paciente que está doente e que você deve, em primeiro lugar, motivá-lo a fazer o tratamento.”

Como funciona a internação involuntária

A internação involuntária pode ser solicitada um familiar ou responsável legal do usuário. Os parentes dos dependentes podem solicitar a internação nos 97 Caps da capital, nas 23 UPAs ou nas tendas do SIAT emergencial, localizada na esquina com a Rua Helvétia com a Avenida São João.

Em junho de 2019, o presidente Jair Bolsonaro sancionou a nova Lei de Drogas, que autoriza a internação sem consentimento de dependentes químicos. Desde então, a Prefeitura já havia recorrido a essa medida, mas intensificou nos últimos meses.

“É exatamente isso, já existia, mas a gente reforçou, tanto é que agora, a gente teve, de abril para cá, 22 pessoas que os familiares solicitaram. Os médicos avaliaram e foi necessário que ele faça essa internação, que é por 90 dias. Depois vai para um tratamento desintoxicação”, disse o prefeito Ricardo Nunes nesta segunda (6).

Ainda segundo Nunes, o Hospital Bela Vista, no Centro, é referenciado paras pessoas em situação de rua e também para receber as pessoas da internação involuntária.

O prefeito afirmou que atualmente a capacidade de atendimento é para 200 pessoas, mas a prefeitura poderá abrir mais vagas, caso seja necessário.

Em um documento da prefeitura que mostra 22 pacientes do Hospital Municipal da Bela Vista internados involuntariamente neste ano, há o motivo da internação. Entre as causas, além de psicose e catatonia, o argumento alegado em 18 casos é “juízo de realidade prejudicado”.

Além desses 22 pacientes internados involuntariamente, seis foram voluntariamente para comunidades terapêuticas. Desses, quatro permanecem e dois desistiram, segundo fontes da reportagem.

Polêmica em 2017

Após uma megaoperação em maio de 2017 na região da Cracolândia, a então gestão municipal de João Doria pediu à Justiça para que os usuários de drogas pudessem ser internados compulsoriamente (por determinação judicial).

Na época, o Ministério Público (MP) de São Paulo classificou como uma “caçada humana” o pedido feito pela prefeitura.

“[É] o pedido mais esdrúxulo que eu vi em toda minha carreira, quer seja antes como advogado, quer seja agora como membro do Ministério Público”, afirmou o promotor da Saúde Arthur Pinto Filho na ocasião. “O que se quer no pedido é uma caçada humana que não tem paralelo na história do Brasil e do mundo.”

Entenda a diferença entre três os tipos de internação, previstas pela legislação brasileira:

  • Voluntária – com o consentimento e autorização do dependente químico
  • Involuntária – em que um médico determina a necessidade da internação como última alternativa, com o conhecimento de algum familiar ou responsável da pessoa
  • Compulsória – que ocorre por determinação judicial

Fonte: G1

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