Cotidiano

‘Foi uma dor na alma’, diz mulher do interior do Pará que foi para SP fazer aborto após estupro; 7 cidades concentram metade dos registros

Vítima de violência sexual teve aborto legal negado em Belém e obteve auxílio de ONG para custear viagem até São Paulo. Dados de janeiro de 2021 a fevereiro deste ano mostram que 51,2% dos abortos permitidos por lei acontecem em apenas sete cidades brasileiras, e São Paulo lidera.


Mulheres relatam dificuldades para fazer aborto legal: ‘Me senti desprezada’

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Mulheres relatam dificuldades para fazer aborto legal: ‘Me senti desprezada’

Lúcia*, de 33 anos, descobriu que estava grávida pela primeira vez na vida em agosto do ano passado. A gestação foi fruto de uma violência sexual: embora a relação tenha começado com seu consentimento, o parceiro retirou o preservativo durante o ato e a agrediu. A gravidez, portanto, era decorrente de um estupro e, por lei, poderia ser interrompida por meio de um procedimento de aborto legal

Mas, após ter o aborto negado em um hospital de Belém, no Pará, Lúcia* teve que percorrer quase 3 mil quilômetros, de avião, para chegar até São Paulo, onde finalmente pôde pôr fim à gestação em um hospital do SUS.

Em entrevista ao g1, ela contou o que sentiu ao ter que viajar, sozinha e pela primeira vez em um avião, para conseguir um serviço ao qual tinha direito:

“Foi uma dor na alma. Eu me senti desprezada”, disse.

A capital paulista é a cidade que mais realizou abortos legais entre janeiro de 2021 e fevereiro de 2022, o que condiz com o tamanho da sua população, a maior do país. Mas dados deste período obtidos pelo g1 mostram que 51,2% dos abortos permitidos por lei aconteceram em apenas sete cidades brasileiras, entre elas a capital paulista. Juntas, essas cidades concentram apenas 13,8% da população nacional, segundo estimativa do Instituto Nacional de Pesquisa e Estatística (IBGE) para 2021.

Concentração dos abortos legais nos municípios brasileiros — Foto: g1/arte

Para especialistas no tema, este dado mostra que o acesso ao serviço de aborto legal no país está excessivamente concentrado em algumas poucas localidades, e que mulheres que vivem em outros lugares acabam tendo que se deslocar por longas distâncias para fazer o procedimento (veja mais nesta reportagem).

A concentração dos serviços em poucas cidades representa uma entre diversas dificuldade que mulheres brasileiras enfrentam para obter o abortamento no país. Apesar disso, uma pesquisa do instituto Datafolha divulgada na última sexta-feira (3) mostrou que a parcela da população que quer proibir aborto em qualquer caso no Brasil caiu de 41% para 32%. Nesta semana, o Ministério da Saúde publicou uma cartilha controversa na qual afirma que “não existe aborto ‘legal’” e defende que os casos em que há “excludente de ilicitude” sejam comprovados após “investigação policial”.

Aborto legal: 4 em cada 10 mulheres têm que viajar para fazer procedimento

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Recusa do aborto legal

Após descobrir que estava grávida, Lúcia* entrou em desespero. Embora a relação sexual que deu origem à gestação tenha começado com seu consentimento, o parceiro a enganou e retirou a camisinha durante o ato.

Essa prática, conhecida em inglês como stealthing, é considerada crime segundo o Código Penal brasileiro. O artigo 215, que trata de violação sexual por meio de fraude, define como crime “ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com alguém, mediante fraude ou outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação de vontade da vítima”. A fraude, neste caso, seria a remoção do preservativo sem a anuência da parceira.

Apesar de saber que havia sido vítima de violência sexual, Lúcia* só descobriu que poderia ter acesso ao aborto legal depois de entrar em contato com a ONG Milhas Pela Vida das Mulheres, que auxilia mulheres a conseguir acesso ao procedimento no Brasil.

Sob orientação da organização, ela foi da sua cidade, no interior do Pará, até a capital do estado. No entanto, em Belém, ela teve o direito ao aborto negado na Santa Casa do Pará. O g1 entrou em contato com o hospital e com a Secretaria da Saúde do Pará, mas não obteve retorno.

“Me disseram que eu não tinha não tinha direito [ao aborto legal] porque eu não tinha nenhum Boletim de Ocorrência (BO) e não tinha tido nenhum sinal de agressão física. Eles falaram que, para eu fazer esse procedimento lá, eu teria que ter isso”, disse Lúcia*.

Fundação Santa Casa de Misericórdia do Pará - santa casa belem — Foto: Cristino Martins/Agência Pará

Fundação Santa Casa de Misericórdia do Pará – santa casa belem — Foto: Cristino Martins/Agência Pará

A legislação brasileira, no entanto, não exige registro de ocorrência policial.

“O Código Penal não exige qualquer documento para a prática do abortamento nesses casos, e a mulher violentada sexualmente não tem o dever legal de noticiar o fato à polícia. Deve-se orientá-la a tomar as providências policiais e judiciais cabíveis, mas, caso ela não o faça, não lhe pode ser negado o abortamento”, afirma a norma técnica do Ministério da Saúde que regulamenta a prática.

Lúcia* passou o dia todo no hospital, onde conversou com uma equipe composta por psicólogo, assistente social e ginecologista. Ao final do dia, ela foi informada, pela médica, que não tinha direito ao procedimento. Ela estava só com a roupa do corpo, e teve que procurar um abrigo municipal para dormir em Belém naquela noite, antes de voltar para sua cidade.

“Eu fui tratada como se eu tivesse querendo fazer algo ilegal, como uma mentirosa”, diz.

A roteirista Juliana Reis, fundadora da organização que ajudou Lúcia*, afirma que 51% das mulheres auxiliadas pela ONG no acesso ao aborto legal não sabiam que tinham direito ao procedimento. A pesquisa foi respondida por 215 mulheres que fizeram a interrupção da gestação com auxílio do grupo.

A organização também ajuda a financiar a viagem de mulheres de baixa renda ou em situação de vulnerabilidade socioeconômica que decidiram realizar um aborto fora do Brasil.

Viagem para SP

Movimentação de passageiros no Aeroporto de Congonhas, em SP — Foto: Renato S. Cerqueira/Futura Press/Estadão Conteúdo

Movimentação de passageiros no Aeroporto de Congonhas, em SP — Foto: Renato S. Cerqueira/Futura Press/Estadão Conteúdo

Depois de ter o aborto negado na Santa Casa do Pará, Lúcia* ainda teve que passar um outro dia em Belém para obter acesso ao seu prontuário médico. O documento é um dos instrumentos que podem ser usados para recorrer da recusa.

Com o prontuário em mãos, ela voltou para sua cidade, a cerca de 5 horas de carro da capital paraense, e esperou pouco menos de um mês até que a ONG organizasse sua viagem para São Paulo. O traslado foi pago pela organização, já que ela não tinha recursos para financiar a viagem.

Durante esse período de espera, Lúcia* manteve em segredo a gestação e a tentativa de obter o aborto legal por medo da reação de seus familiares e amigos.

“Eu tinha muito medo de julgamento. Eu já não tenho meus pais, e os outros familiares com quem eu tenho contato são evangélicos, então eu não compartilhei isso com ninguém. Eles poderiam até me acolher, mas o julgamento viria primeiro”, disse.

Na capital paulista, Lúcia* foi atendida no Hospital Pérola Byington, que é referência em saúde da mulher e violência sexual. Na unidade, ela teve consultas com psicóloga, assistente social e médicos, e realizou alguns exames. Após ser informada de que poderia realizar a interrupção da gestação, ela foi encaminhada para outro hospital, porque no Pérola só havia data para a realização do aborto legal dentro de cerca de duas semanas.

“Eu não tinha como ficar esse tempo todo esperando em São Paulo, não tinha como pagar para ficar hospedada e também precisava voltar pra trabalhar. Então ainda bem que eles conseguiram vaga pra mim em outro hospital”, disse.

Encaminhada para o Hospital Geral de Vila Nova Cachoeirinha, na Zona Norte da capital, Lúcia* foi recebida pela equipe médica já com as informações repassadas pela equipe do Pérola Byington. Assim, não foi preciso repetir as informações e os exames. Questionada sobre a sensação após o fim do procedimento, Lúcia disse:

“Um sentimento de liberdade. De ter conseguido o meu direito”, contou.

Concentração dos serviços

Assim como Lúcia*, milhares de outras mulheres que têm direito ao aborto legal viajam para São Paulo para obter o serviço. A concentração do atendimento ocorre não apenas na capital paulista, mas também em outras seis cidades brasileiras que, juntas, reúnem mais da metade dos abortos legais.

Dos 1.823 registros de aborto no país entre janeiro de 2021 e fevereiro de 2022, 934 foram notificados em sete cidades: São Paulo, Recife, Rio de Janeiro, Salvador, Porto Alegre, Fortaleza e Belém.

Considerando os 28 municípios do país que mais fizeram abortos legais no período, o número chega a 1.471 e ultrapassa 80% do total de procedimentos realizados. Essas 28 cidades têm, juntas, 49,3 milhões de habitantes, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o que corresponde a 23% da população brasileira.

Ao todo, 175 municípios tiveram pelo menos um aborto legal no período analisado. Juntos, eles reúnem 80,6 milhões de habitantes, o que equivale a somente 38% da população brasileira. No restante do país, onde residem 132,7 milhões de pessoas, ou cerca de 62% da população, não há registros de aborto legal no período.

É possível que outros municípios disponibilizem o abortamento, mas que nenhuma mulher tenha buscado o serviço no período analisado. Segundo dados do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES) de fevereiro, 69 municípios têm estabelecimentos cadastrados para fazer interrupção de aborto nos casos previstos em lei. Destes, 20 não tiveram nenhuma interrupção de gestação registrada no período da pesquisa. Outros 132 municípios que registraram aborto nos 13 meses analisados não estão cadastrados na plataforma.

Apesar disso, em nota enviada ao g1, a pasta disse que o país tem apenas 111 estabelecimentos de saúde habilitados para realizar procedimento de interrupção da gestação.

A diferença entre a população das cidades que fizeram abortos e o resto do país é vista por pesquisadores e médicos como um sinal de que o serviço está disponível apenas para uma parcela pequena das mulheres que, por lei, têm direito ao aborto seguro.

A coordenadora do Núcleo de Atenção Integral a Vítimas de Agressão Sexual do Hospital das Clínicas de Uberlândia (Nuavidas/UFU), Helena Paro, afirma que essa concentração dos casos em poucas cidades mostra que “o aborto legal está só no papel”.

“Isso quer dizer que quase a totalidade das meninas e mulheres brasileiras não têm acesso a um direito que lhes é garantido desde 1940. O ponto é justamente este: o aborto nos casos de violência sexual, anencefalia e gravidez de risco para a mulher está só no papel. Ele não é garantido. A gente deveria ter política pública, ter uma ação afirmativa do governo federal”, diz.

Para a doutoranda em Saúde Coletiva na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Marina Jacobs, o dado chama atenção especialmente considerando que o aborto pode ser um procedimento simples, e, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), deveria inclusive ser ofertado em unidades de saúde de Atenção Primária.

“A centralização desse cuidado, como acontece no Brasil, pode limitar o acesso ao aborto nas situações previstas em lei, violando o direito das pessoas que precisam do procedimento”, afirma Jacobs.

Para a pesquisadora, o fato de parte dos serviços de referência para interrupção de gravidez não registrar abortos pode indicar falha de registro, mas também barreiras de acesso como o desconhecimento sobre a previsão do aborto nos casos excepcionais e sobre os serviços que o realizam. Medo da criminalização da vítima ou vergonha pelo estigma do procedimento também são apontados pela especialista como razões para os baixos números de procedimentos.

Metodologia

Os dados utilizados nesta reportagem foram obtidos junto ao Ministério da Saúde por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI). No pedido, foi solicitada a quantidade de mulheres que fizeram aspiração manual intrauterina (AMIU) ou curetagem — os dois procedimentos usados no Brasil para abortar — com o código da paciente 004, que identifica o aborto por razões médicas e legais. O levantamento inclui as três possibilidades de aborto previstas em lei — estupro, risco de vida para a mulher e fetos anencéfalos.

Não há, entre os procedimentos no DataSUS, um código exclusivo para contabilizar o aborto feito apenas com medicamentos, sem aspiração intrauterina ou curetagem, procedimento menos frequente nos serviços de saúde do país. Por este motivo, esses casos não foram considerados no levantamento.

A reportagem optou por solicitar o CID e os procedimentos, em vez de somente o CID, de modo a garantir que não há pacientes duplicadas no sistema. Caso o estabelecimento tenha feito aborto estritamente medicamentoso, sem intervenção de curetagem ou AMIU, ou não tenha registrado o procedimento do aborto cirúrgico, o dado não aparecerá no levantamento.

Segundo especialistas, o número de mulheres que saíram do município de origem pode ser ainda maior, uma vez que o preenchimento desses dados é feito pelo hospital, que pode registrar o município de residência igual ao da internação, caso não tenha o dado disponível.

Os dados também podem conter outros erros de preenchimento, como os identificados na cidade de Magé, no Rio de Janeiro, onde abortos espontâneos estavam sendo registrados como abortos legais há anos. O problema foi constatado pela prefeitura após o g1 entrar em contato. Por conta desta falha, os dados de Magé foram desconsiderados nesta reportagem.

Em nota, o Ministério da Saúde afirmou que atualmente o país conta com 111 estabelecimentos que fazem aborto legal e que as mulheres são encaminhadas para outras unidades, “considerando a complexidade e necessidade de cada caso, ou quando os serviços de saúde locais não dispõem de equipe qualificada para realização dos procedimentos”. Segundo a pasta, a medida tem “o objetivo de garantir o acesso, a integralidade e a segurança do cuidado previsto em lei”.

Veja a nota do Ministério da Saúde:

O Ministério da Saúde informa que, em 2020, foram realizados 2.071 procedimentos com excludente de ilicitude. Em 2021, foram registrados 1.997 procedimentos. Em 2022, até o mês de fevereiro, foram registrados 385 (dados preliminares, sujeitos à alteração).

Atualmente, o Brasil conta com 111 estabelecimentos de saúde habilitados para realizar procedimento de interrupção da gestação nos casos excludentes de ilicitude. Considerando a complexidade e necessidade de cada caso, ou quando os serviços de saúde locais não dispõem de equipe qualificada para realização dos procedimentos, as mulheres são encaminhadas para outras unidades, com o objetivo de garantir o acesso, a integralidade e a segurança do cuidado previsto em lei.

O Ministério da Saúde informa que a medicação Misoprostol é uma prostaglandina comumente utilizada como agente único para indução de abortamento. A sensibilidade do útero às prostaglandinas aumenta com a idade gestacional e, por esta razão, o uso do medicamento deve ser decrescente com o decorrer da gravidez.

A administração ideal desta medicação é determinado pelo equilíbrio entre eficácia, efeitos adversos e aceitabilidade pelas pacientes. Como exemplo, doses mais altas e intervalos de dosagem mais curtos aumentam a eficácia, mas também podem resultar em taxas mais altas de efeitos adversos e complicações.

Cabe destacar que a indução de abortamento com medicação pode não ser completamente eficaz, evoluindo para um abortamento incompleto ou continuação da gravidez com complicações para a mãe e para a formação do bebê. Por isso, a avaliação de produtos presumidos da concepção e o exame pélvico devem ser realizados pelo profissional de saúde antes de cada dose adicional a ser administrada. A manutenção da gravidez, apesar da indução do processo de abortamento, é mais provável de acontecer com a técnica medicamentosa quando comparada a cirúrgica.

Por fim, a Pasta informa que os procedimentos realizados pelo SUS são apenas os descritos em lei e que para reduzir os riscos inerentes e oferecer segurança a mulher, todas as pacientes elegíveis ao procedimento de interrupção da gravidez devem ser submetidas a avaliação médica, incluindo anamnese e exame físico. A avaliação ultrassonográfica é necessária para confirmar a idade gestacional, a localização da gravidez ou presença de doença trofoblástica gestacional.

A avaliação da hemoglobina e hematócrito torna-se importante na identificação de pacientes anêmicas e que por isso, apresentam um risco maior de descompensação hemodinâmica se caso apresentarem hemorragia, até mesmo de pequena monta. O tipo sanguíneo e o status dos anticorpos também devem ser verificados e a imunoglobulina anti-Rh administrada, se indicada.

Fonte: G1

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